Depois de um interregno de quase três meses, o Gustavo está de volta com mais uma edição do "Ninho de Cucos". Disfrutem.
“Recordar é viver.” Excepto que não é. Viver é muito melhor do que recordar. Relembrar acontecimentos é uma actividade que o ser humano se dispõe a fazer simplesmente porque esses acontecimentos não podem ser repetidos. E mesmo quando ainda podem ser repetidos, justifica-se que apenas sejam recordados sob a punição de arruinar uma bela memória com uma traumática e mal sucedida repetição.
Mas divago. Recordar, a capacidade de relembrar situações passadas e desenvolver uma emoção consequente, é uma habilidade fantástica que separa o Homo Sapiens do resto dos reinos da taxonomia lineana. Nela podemos encontrar a razão que motiva a criação de sonetos, sinfonias, gravuras... em suma, de toda a arte! A saudade é a origem da criação artística.
O cinema, como o veículo sofisticado de expressão artística que é, não podia ser isento a este paradigma. Desde o diligente artista doméstico que cumpre a obrigação de documentar em formato analógico as festividades e desventuras da família, até ao dotado cineasta que transforma momentos históricos em magníficas obras de arte, toda a sétima arte é de alguma forma regida pelo dever emocional de esculpir sentimentos associados a acontecimentos antigos. De tal forma é isto verdadeiro, que os grandes eventos históricos não têm dificuldade em ver-se retratados nas salas de cinema. Experimentemos por exemplo a 2ª Guerra Mundial. À cabeça, salta logo o "Saving Private Ryan", um dos melhores esforços ocidentais sobre o tema, mas facilmente surgem outros bastiões como "Casablanca", "Judgement at Nurenberg" e "Schindler's List"; a oriente "Mai Wei", uma película coreana, dá uma perspectiva diferente do conflito, sob o pano de fundo de uma história épica; da Bielorrússia, "Idri i smotri", um hipererrealista e nauseabundo retrato da cruel vivência na Europa Oriental devastada pelo avanço nazi; ainda a minissérie americana "Band of Brothers", que relata os destinos de um pelotão desde o seu treino até ao fim da Guerra. Outros períodos de grande relevância, como o apogeu do Império Romano (com "Gladiator", "Ben-Hur", ...), a Guerra Civil Americana (com o recente "Lincoln"), entre outros, representam perfeitamente a preponderância que o filme histórico tem no mundo do cinema.
No entanto, apesar de a recordação ser o motivo primordial da necessidade artística, não é absolutamente correcto defini-la como o motor único de onde deriva toda a criação artística. Na verdade, o ser humano não é suficientemente desenvolvido para conseguir recordar eventos passados sem lhes acrescentar ou ocluir determinados pormenores. Daí que nenhuma recordação seja absolutamente pura - nenhuma memória é desprovida do julgamento subjectivo que o subconsciente individual de cada um faz sobre qualquer acontecimento vivenciado.
Conclui-se que, no fundo, a capacidade de fantasiar ocorrências transactas é inerente ao processo criativo, quer seja obtida de modo propositado ou involuntário. Mas, embora esta aptidão de inventar surja como que de um défice da espécie humana em conceptualizar o que a rodeia, impressiona pensar que esta deficiente e inadaptada estirpe de primatas bípedes consegue contornar esse obstáculo funcional e inclusivamente torná-lo numa vantagem imprescindível até à evolução da própria espécie. É esta habilidade de controlar o modo como fantasiamos que nos permite ter luz durante a noite ou ter calor quando está frio. E assim se justifica que, da mesma forma que temos propensão a reviver o passado, também tenhamos tendência para inventar futuros hipotéticos e fantasiosos, como nas produções de ficção científica como "Star Wars", "2001, A Space Odyssey" e "A Trip to the Moon"; como o cómico surrealismo dos Monty Python em "The Meaning of Life"; como o recorrente filme sobre viagens no tempo de "Back To The Future", "12 Monkeys" ou "The Butterfly Effect"; como a enigmática alegoria do fantástico "Holy Motors"; ou ainda a fusão do filme histórico com o filme de fantasia em "The Gold Rush", "Life of Brian" ou "El Labirinto del Fauno".
Seja qual for a origem da criação cinematográfica, cabe ao espectador tirar o melhor de cada faceta da sétima arte, quer seja um trabalho de índole histórica ou uma obra fantasiosa tal como esta, que me vê atirar esforçadas palavras para o ecrã. Compreender que um filme não se reduz a uma sequência de imagens animadas, mas ao produto de uma extensa actividade planificativa de encadeamento de ideias aglutinadas por um nexo causal, faz parte da obrigação de um espectador educado.
Gustavo Santos