Como amante do cinema não podia estar mais contente por esta zaragata toda dos Óscares estar finalmente a assentar. Aquilo que me faz gostar de cinema é poder ver uma bela obra de arte quando o acaso mo permite e a vontade o deseja, não a necessidade imperiosa e urgente que o último filme da Universal ou da Paramount faz surgir nos pobres de nós que se deixam viciar pela indústria sediada nas colinas californianas. Mas esqueçamos essa efeméride, cuja esfera gravitacional de interesse suga até as palavras do cronista que a tenta infrutiferamente evitar.
Em vez disso encaremos a 7ª arte pela perspectiva do covarde que evita qualquer confronto com o novo, na ânsia de assim poder evitar toda a aberração artística que, por meio de boa propaganda, consegue colocar-se nas bocas do mundo. Não se pode dizer que esse covarde seja uma fabricação artificial de um receio que não tem razão de existir, mas como o hipocondríaco que desorientado pela evolução médico-farmacêutica se acha portador de toda a maleita, é também o nosso atarantado cinéfilo um produto da radiação massiva a que a indústria cinematográfica o expõe. E não é falso que não hajam motivos para esta fobia: televisão, revistas, jornais, paragens de autocarros, etc. nada é deixado incólume pelos Donald Drapers do mundo ocidental, e verdade seja dita, é um trabalho incansável o destes senhores, se tivermos em conta que, mesmo no momento em que nos deixamos vencer pela sugestão do reclame e pomos os pés na sala de cinema, somos inundados com ainda mais slogans, trailers e outro arsenal publicitário!
Ainda assim este negócio, sendo por si só uma forma de arte, não deixa de ser em termos práticos uma questão de quantidades e alcances. Longe de ser um entendido na área, acredito que o sucesso de uma campanha depende muito mais da quantidade de vezes que ela é repetida perante o público-alvo do que propriamente da qualidade do seu conteúdo. Toda a gente se lembra de anúncios intemporais como o da Ferrero Roché ou de outras marcas que repetem os seus reclames há anos, mas se pensarem nisso ninguém consegue eleger o(s) melhor(es) anúncio(s) que viu na vida! Podemos pegar no fenómeno musical Justin Bieber e perceber que a reputação não serve de nada quando o alcance atinge semelhante magnitude. Com o cinema acontece o mesmo. Um filme fraquinho e ranhoso que seja produzido pelos grandes estúdios corre o risco de encontrar uma boa agência de publicidade, e ser inclusivamente confundido com um filme tolerável.
É disto que o nosso covarde tem medo. Mas este fictício amigo sabe bem que nem a melhor publicidade do mundo pode fazer um falhanço artístico ter um velório menos precoce, a não ser que se trate de uma daquelas magníficas histórias de fracasso colossal que ficam imortalizadas, que nem fábulas lafontaineanas. A crítica, e sobretudo a ausência dela, separa os trigo do joio e ao fim de algum tempo a consciência cultural do filme passa a ser muito mais fidedigna. E é assim que se constroem os clássicos. Aqueles que, por mais tempo que passe, nunca chegam verdadeiramente a passar de moda!
É óbvio que nem todos podemos ter a mesma opinião acerca de algo tão vago como um filme, porque afinal o cinema é uma arte e como tal tem um filtro de subjectividade associado a ele. Para além do mais a mente humana tem o terrível 'defeito' de não ser monovalente, ou melhor dito nas palavras de Balzac: "cada ideia tem o seu direito e o seu avesso. Tudo é bilateral no domínio do pensamento. As ideias são binárias". E é precisamente por isso que é perfeitamente impossível conseguir-se catalogar cinema por ordem de qualidade. Por mais peritos que se possam juntar, nunca se poderá encontrar um melhor filme de sempre! Da mesma forma, perceber se uma fita recém-lançada nas salas de cinema, poderá pertencer ao panteão dos filmes que glorificam esta arte que tanto prezamos não será concebível sem o período ruminatório que a nossa consciência artística global exige.
Dá a impressão que os receios do covarde até podem ter razão para existir. Mas vendo as coisas de um prisma mais abrangente, facilmente se percebe o quão egoísta e oportunista esta atitude é. Egoísta porque um indivíduo que não se permite a visionar filmes novos por medo da sua mediocridade é um voltar de costas à discussão que a internet, os media, e a blogosfera têm no sentido de trazer uma voz crítica e assim fazer evoluir o mundo do cinema. Oportunista porque se alimenta do trabalho de outros sem ter qualquer papel nessa demanda, da mesma maneira como o Cardozo consegue ser o melhor marcador da última década no Benfica, apesar de ser o homem mais descoordenado da América do Sul.
Contudo ao fim e ao cabo, o indivíduo que fica à espera dos experts para saber qual o melhor filme, corre o risco de ver a sua busca perdida numa opinião falaciosamente ditada por tendências que não correspondem às suas. E voltando ao tema das estatuetas douradas, é perturbador saber que pérolas da história do cinema como Citizen Kane, 12 Angry Men ou A Clockwork Orange nunca tenham sido propriamente distinguidas, e génios incontornáveis como Welles, Kubrick ou Kurosawa tenham sido tão hostilizados pela agremiação que supostamente lidera o mundo do cinema. A Academia é tão conhecida pelos prémios que atribui como pela barbaridade dos erros que comete!
Mas o que fica é a noção de que os inúmeros certames que celebram a arte do cinema funcionam como que guidelines para a comunidade cinéfila. Enquanto que esta atitude possa ser parcialmente justificável, há que manter a imparcialidade na escolha daquilo que vemos e não nos deixarmos assoberbar pela poderosa influência do mundo publicitário, sob pena de se cair no futilidade. Conhecer cinema não é ver um filme do Fellini e dizer que não se gosta do estilo, ou ver um filme taiwanês e resmungar contra o cinema asiático. Hoje em dia já há tanto filme como havia chapéus no tempo do Vasco Santana, mas dá-me a ideia que andamos todos a ir ao cinema no mesmo chapeleiro.
Há que saber ir à loja do fundo da rua perguntar se tem coisas novas!
Gustavo Santos
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