THE WIRE,
ou como o conceito de televisão é obtuso demais para certas séries
THE WIRE, considerado justamente como um dos melhores dramas de sempre, é muito mais que um simples drama televisivo com a chancela da HBO (desde logo, óbvio selo de excelência). Foi esta série que redefiniu, para mim, o que quer dizer o termo “melhor série de todos os tempos”. “Realista” é um termo demasiado lato para definir a excelência desta série – mais vezes parecida com um produto documental que uma série televisiva, THE WIRE segue de forma fiel e crua os intervenientes do tráfico de droga e da brigada policial de combate às drogas, contando as suas histórias e mostrando a sua vida e o seu dia-a-dia e, através disso, tece um comentário genuíno, sincero e crítico sobre a tempestuosa relação entre os diferentes círculos sociais de Baltimore, em especial a complicada convivência entre negros e brancos, não se coibindo de opinar sobre a política citadina ou a influência dos media na sociedade contemporânea.
Uma série, portanto, que ultrapassa largamente o confinado conceito de televisão que ainda hoje preenche as grelhas de todos os canais generalistas americanos – e mesmo os de cabo, capaz de provocar além de entreter, de nos levar a pensar sem nos dar a resposta logo de seguida. Em termos de “melhores de sempre”, só encontra os seus pares em “Mad Men”, “The Sopranos”, “Six Feet Under” e “Breaking Bad”. E mesmo estes, em minha opinião, não chegam perto das aspirações que “The Wire” se propõe atingir.
McNulty. Stringer Bell. Omar Little. Bunk. Avon. Com personagens genuínas e honestas e complexas, independentemente do seu género, raça ou classe social, e uma facilidade brilhante em humanizar e apagar a linha ténue que existe entre o bem e o mal, fazendo-nos muitas vezes sentir e emocionar-nos com personagens capazes de actos imensamente cruéis, THE WIRE nunca nos pede para julgar, ajudando-nos a compreender que no fundo ambos os lados têm mais em comum do que pensam e que todos têm os seus motivos e ambições e todos procuram viver a sua vida, nas suas próprias circunstâncias, o melhor que conseguem.
McNulty é o perfeito exemplo de uma personagem que teoricamente seria um dos bons que, contudo, é na prática muito mais complicado de entender. Um homem problemático, com uma personalidade difícil, destrutiva e por vezes irracional, que se entrega à bebida e ao prazer instantâneo com múltiplas mulheres.
Nenhum outro programa tentou retratar, de forma tão imparcial, autêntica e detalhada o ambiente político-social de uma pacata cidade americana com a grandiosidade, inteligência, reflexão e visão que o diálogo e as personagens de David Simon e Cª o fizeram.
THE WIRE nunca teve, ao longo do seu curso, as audiências que a série merecia (é um milagre que tenha sobrevivido cinco temporadas) mas foi ganhando fama de série de culto imediatamente após o seu término. E assim continuará a suceder. Todos os dias, em algum lado, alguém vai pegar em THE WIRE. E irá ficar desde logo encantado pelos fabulosos e intoxicantes créditos de abertura. E vai perceber o nível de genialidade e criatividade de David Simon e o quão profundo e importante é que temas desta dimensão sejam discutidos desta forma na televisão. E acima de tudo vai entender o quão precioso é cada episódio – e só há 60. E certamente que sessenta míseras horas de uma das maiores produções televisivas de sempre é muito pouco, não?