Dial P for Popcorn: O perigo de ser número 1

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O perigo de ser número 1


Notícia antiga, eu sei, mas ainda não tinha sido discutida aqui no blogue, portanto cá estamos. 


Ao fim de cinquenta anos de reinado no topo da lista, a obra-prima de Orson Welles (discutível, eu sei) "Citizen Kane", universalmente considerado o melhor filme da história do cinema, é destronado na lista de 2012 da revista Sight & Sound. O novo número um da lista é, (pouco) surpreendentemente, "Vertigo" de Alfred Hitchcock, que há dez anos atrás tinha ficado a escassos cinco votos de ultrapassar "Citizen Kane". A lista dos realizadores, contabilizada à parte da lista dos críticos e também ela liderada anteriormente por "Citizen Kane", tem também um novo líder: "Tokyo Story" de Yasujiro Ozu (espero ansiosamente pelo lançamento da revista para depois cá discutir algumas listas, de Scorsese a Allen, de Mann - que adora "Avatar" a Del Toro).


De resto, a lista dos críticos sofreu pouquíssimas flutuações, algo estranho ainda por cima tendo em conta o aumento substancial no número de contribuidores para a lista deste ano, em relação à de 2002. "Battleship Potemkin" de Einsenstein dá lugar a "Man with a Movie Camera" de Vertov, da mesma época. O emparelhamento de "The Godfather" e "The Godfather: Part II" de Coppola, muito contestado aquando da lista anterior, foi desfeito e, com os votos separado, os críticos não chegaram a um consenso em relação a um dos filmes e, por isso, abandonam a lista por troca com "The Searchers", por muitos considerado o melhor filme de John Ford e John Wayne. Finalmente, "The Passion of Joan of Arc" de Dreyer retorna à lista depois de ter aparecido pela última vez na lista de 1992. Infelizmente, o excelente "Singin' in the Rain" de Gene Kelly é empurrado, assim, para fora dos dez primeiros. "2001: A Space Odyssey" de Kubrick é o filme mais recente da lista, datado de 1968, uma lista que em comparação com a de 2002 até regrediu em idade média das películas nos dez primeiros lugares, com o maior número de filmes mudos desde a primeira lista, de 1952. Nos primeiros cinquenta lugares encontram-se apenas dois filmes do novo século e entre eles não está a escolha que muitos apontavam ("There Will Be Blood") como certa: "In the Mood for Love" e "Mulholland Drive" foram as duas escolhas.


Começo desde logo por afirmar que eu sou um acérrimo defensor de "Citizen Kane" como melhor filme da história do cinema. Não propriamente pela sua qualidade (que tem), pela revolução que provocou na época (que de facto provocou) ou pelo estatuto de obra-prima que adquiriu ao longo dos anos (que é merecido), mas porque é, para mim, um exemplo perfeito daquilo que o nosso ideal de cinema deve ser e é, acima de tudo, uma introdução mais que especial aos aprendizes cinéfilos que têm em "Citizen Kane" um fio condutor para o que cinema de qualidade deve ser e a partir deste adquirir o gosto pela sétima arte. "Citizen Kane" mostra o melhor que o cinema tem para oferecer, mantendo-se como um clássico incontestável com pinceladas de modernismo e vibrante estilo e estética. Contudo, há também vantagens em "Citizen Kane" deixar de ser o número um. O consenso em torno do seu rótulo de "melhor filme de sempre" estava a começar a atingir níveis de saturação. Toda a gente sabe que é um dos filmes mais influentes do cinema moderno, toda a gente reconhece o seu valor e qualidade - mas cada vez mais surge mais gente que não percebe o que tem "Citizen Kane" de tão especial para ser colocado em tão alto pedestal, em tão alto nível de sacrilégio e santificação. Idealmente, trocaria este por "2001: A Space Odyssey", que é para mim (um cinéfilo ainda em treino) a obra mais transcendente e imaculadamente perfeita que o cinema me apresentou. Apesar da lista soar a antiga, qualquer um destes dez filmes merece o seu lugar. São películas revolucionárias, que quebraram convenções e ideologias do que o cinema é suposto ser. São adorados e glorificados por alguma razão, ainda que me custe ver gente como Allen, Almodovar, Altman, Buñuel, Bertolucci, Cassavetes, Coppola, Fassbinder, Haneke, Kieslowski, Malick, Ophuls, Powell e Pressburger, Polanski, Resnais, Ray, entre outros, sem um filme sequer nos cinquenta primeiros lugares (não que eu não ache que Godard não mereça as quatro presenças na lista, mas seguramente que outros grandes realizadores poderiam ocupar o lugar de um ou dois desses).


É, então, em "Vertigo" que recai o peso de ser considerado o melhor filme de sempre. E é uma opção que merece bastante admiração da minha parte. "Vertigo" era um dos filmes favoritos de Hitchcock, sem dúvida um dos maiores cineastas da história do cinema. Fora muito mal recebido na altura, tendo levado até à disrupção da frutífera colaboração entre James Stewart e Alfred Hitchcock, que nunca mais fariam outro filme juntos. Foi subindo de reputação com o tempo, com repetidas visualizações e após surgir em 11º lugar na lista de 1972, foi ganhando mais admiradores e mais votos e, em 2002, parecia já que o futuro primeiro lugar lhe pertenceria. É hoje em dia largamente considerado o trabalho mais completo, mais maduro, mais inteligente e mais pessoal de Hitchcock e, por isso, a sua obra-prima. 

Uma escolha popular para número 1, com certeza. Aliando à sua habitual atmosfera de mistério e suspense temas mais românticos de obsessão e paranóia na busca da perfeição, do ideal, de uma realidade que já não existe (e talvez nunca tenha existido), "Vertigo" é o ideal representante da relação de Hitchcock com a sua arte e de nós próprios com o cinema, que com os filmes também somos observadores, perseguidores de mil histórias sem fim na busca que o mundo que vive na nossa imaginação e na tela comungue com o mundo real e se funda num só. Em última instância, a fantasia nunca alcança a realidade. Longe de ser um filme perfeito, "Vertigo" acaba por ser o filme ideal para um crítico de cinema, uma escolha emocional baseada na nossa própria relação intoxicante com os filmes e com o cinema. Um filme para sonhadores, um filme que seduz e encanta e nos faz perder, vezes sem conta.


O tempo dirá se esta mudança será para manter. Para já, tem dois grandes benefícios: muitos irão reapreciar o cânone que o enorme Alfred Hitchcock deixou para trás e irão redescobrir pérolas como o brilhante "Psycho" (o meu Hitchcock favorito), "Rear Window", "North by Northwest", "Rebecca", "The 39 Steps", "Rope", "Dial M For Murder", entre muitos outros. E o outro grande benefício é que fará também muitos espreitar de novo "Citizen Kane", agora sem o peso - e o pó acumulado - de ser a maior obra-prima desta sétima arte e poderão também encontrar novos detalhes, novas cenas, novas nuances que os encantem de novo e façam regressar o amor que nutrem por este filme.

4 comentários:

Jorge Teixeira disse...

Vertigo atinge o primeiro lugar, pela primeira vez, e com inteira justiça. Não que Citizen Kane não seja um grande filme, um enorme filme aliás. O problema é que nunca é saudável uma obra permanecer demasiado tempo, incólume, no primeiro lugar de qualquer lista. Revela, na minha opinião, pouca abertura, pouco dinamismo, até porque aqui se trata de várias pessoas que a elegem.

De resto estou de acordo contigo, e disseste aqui algumas informações que não sabia :)

Cumprimentos,
Jorge Teixeira
Caminho Largo

Jorge Rodrigues disse...


Perfeitamente de acordo, Jorge. Acho bastante salutar que se mude o topo da lista de vez em quando. Cinquenta anos no topo era já tempo demais. E tanto VERTIGO como CITIZEN KANE só têm a ganhar com a troca, a meu ver.

Cumprimentos,

Jorge Rodrigues

António disse...

Como amante de Cinema que sou e como apreciador e seguidor atento do vosso blog que também sou, gostaria de saber a tua opinião, meu caro Jorge, sobre algo que me faz reflectir: o porquê de só aparecerem dois filmes do novo século no "top 50", ou vendo de um prisma mais generalizado e abrangente, o porquê destas listas, sejam pertencentes a críticos ou realizadores, são sempre preenchidas quase na totalidade com filmes "antigos"?

Honestamente faço esta pergunta não com qualquer crítica subjacente, mas sim com o intuito puro de reflexão.

Quando utilizei em cima a expressão "antigos" tive o cuidado de colocar a palavra entre aspas, porque estamos de facto a falar de filmes que atravessam tempos e gerações. São aquilo a que eu gosto de chamar de 'Obras Eternas' (neste caso em específico, Filmes Eternos).

Qualquer destes filmes é merecedor do seu lugar, não é isso que está em questão. Citizen Kane é magistral e merecedor do lugar que ocupa, Vertigo idem aspas, e por aí fora.

No entanto, porque será que aparecem tão poucos filmes da "Era Moderna" (este termo é extremamente contestável, aliás eu próprio que o estou a utilizar não concordo com ele, mas para facilitar cá está)? Será que tem a ver com uma mente e uma visão do cinema pouco aberta e algo retrógrada por parte daqueles que o compõem, e aqui refiro-me naturalmente a críticos e realizadores? Será que é porque um filme com 30, 40, 50 anos de vida ganha um outro "estatuto", digamos assim, e seja mais fácil elegê-lo do que um filme com 10, 15, 20 anos? Ou será, pura e simplesmente, porque estes filmes que constam nesta lista são objectivamente melhores do que os outros? Ou, dito de uma forma mais extrema, o cinema de antigamente era melhor do que o actual?

Eu sinceramente não tenho uma resposta nem uma opinião definida sobre isto. E o mais provável é que não exista uma resposta certa e definitiva acerca do assunto. O que achas?

De resto, aproveito para saudar o vosso regresso, o regresso do Dial P For Popcorn, do qual já sentíamos falta!

Cumprimentos,

António Vieira


PS: um pequeno aparte, e em relação a esta lista, é com uma felicidade incrível que vejo nela Mulholland Drive, o meu filme preferido eheh

Jorge Rodrigues disse...


António -- Antes de mais, obrigado pelo comentário e pela discussão saudável que ele proporciona.

Penso que não existe uma explicação simples para esse facto, mas acho que isto reside fundamentalmente em dois aspectos:

1) na idade, pois para muitos cinéfilos o estatuto, como bem referes, só se ganha com a idade. E muitos acreditam que um filme deve resistir aos anos para ser considerado digno de estar numa lista com os melhores de sempre.

2) os filmes modernos devem muito ao cinema clássico, e há a tendência a dar muito mais valor ao cinema clássico por isso, porque abriram o caminho ao que se faz hoje. E a verdade é que há filmes clássicos muitos simples (ex: Singin' in the Rain) que são muito mas muito simplistas na narrativa mas cuja riqueza, se fosse um filme feito hoje em dia, seria muito menor. É um filme que ganha valor não só pela sua inegável qualidade mas por ter sido feito na época em que foi feito.

E depois há a questão das modas: se fores comparar listas de outros anos, nota-se subidas e descidas interessantes. O próprio VERTIGO é um case study, tendo saltado na lista ao longo dos anos.

Há de facto cinéfilos mais conservadores (não diria retrógados) e há também aqueles que tendem a exagerar na valorização dos filmes mais modernos, há de tudo basicamente.

No fundo, estas listas não podem ser encaradas de forma académica, laica, séria. São um bom ponto de partida para qualquer cinéfilo seguir e perceber o que de bom se fez no cinema até ao momento em que ele pega na lista e daí eu acho natural que as pessoas que votam nestas listas peguem mais em filmes clássicos (até porque é uma forma de nunca os deixar cair em esquecimento). Tentar ver mais do que isto é tentar penetrar em milhares de mentes de uma só vez. É uma conjugação de factores que é impossível de explicar. :)

Obrigado e abraço!