Peço desculpa por só agora me dedicar aos filmes que vi no Lisbon & Estoril Film Festival, mas pronto, espero ainda ir a tempo:
"In a million years, when kids go to school, they're gonna know: once there was a Hushpuppy, and she lived with her daddy in the Bathtub."
Se anseiam por experiências que vos transcendam numa sala de cinema, não procurem mais – “Beasts of the Southern Wild” é o filme que procuram. Uma película única e francamente original, construída parte realismo, parte misticismo, que nos transporta para o mundo inacreditável e surreal de Hushpuppy, uma pequena, mas forte e dura menina do Louisiana, que habita na “Bathtub”, uma comunidade pobre e abandonada na periferia de New Orleans, constantemente afectada por inundações no pós-furacão Katrina.
Interpretada pela destemida e segura Quvenzhané Wallis, que tinha sete anos na altura de filmagem, Hushpuppy é uma força da natureza, tal a presença sobrenatural e à vontade que a actriz parece sentir no papel. Treinada por todos em seu redor a estar sempre preparada para sobreviver a qualquer eventualidade e para aprender a conviver lado a lado com a Natureza, o primeiro acto do filme, que nos apresenta o dia-a-dia da radiosa Hushpuppy, é de uma beleza quase inarrável, enquanto somos apresentados uma forma diferente de ver o mundo, um mundo praticamente pós-apocalíptico onde as pessoas se contentam com pouco, onde as pessoas fazem tudo umas pelas outras e onde os laços familiares e de amizade são o mais importante, um mundo ainda onde animais pré-históricos surgem em visões da pequena Hushpuppy como que a representar o mundo ainda desconhecido que Hushpuppy tem de enfrentar quando crescer.
A visão dos aurochs é tão somente uma curiosa forma de ilustrar a forma como as crianças pensam e observam o seu mundo, onde o fantástico é presença comum. A delicadeza com que os argumentistas Benh Zeitlin e Lucy Alibar aliçercam nesta alegoria esta história sobre crescer e aprender a sobreviver e a lutar por si própria impressiona pela fluidez e facilidade com que o real (cada vez mais negro e pesado) e o imaginário (cada vez mais ténue) se encontram. Pelo final do filme, depois de vários obstáculos ultrapassados, Hushpuppy não mais teme os aurochs – pelo contrário, ela olha-os de frente, como que a espantá-los de vez. Hushpuppy está crescida e o fingimento e o mundo de fantasia já não lhe servem de nada – ela não precisa que mais ninguém tome conta dela.
A juntar à brilhante interpretação de Quvenzhané Wallis, Dwight Henry (pasteleiro de profissão) confere uma presença calorosa, mas firme ao pai de Hushpuppy, Wink. Uma interpretação convincente, que cria uma imagem de um pai justo e duro, mas muito protector e amoroso, que sapiente da sua condição sofrível, esforça-se ao máximo para obrigar Hushpuppy a crescer mais rápido que o previsto. Aliás, o filme está constantemente repleto de personagens assim, coloridas e complexas, nem sempre fáceis de entender, uma delícia de seguir. A banda sonora éterea e inspiradora assenta na perfeição como pano de fundo para esta preciosa narrativa, a juntar ao excelente trabalho de produção artística, fotografia e realização da equipa de Zeitlin e Cª, que nos ajudam a facilmente mergulhar neste mundo e a fazer parte do espírito indomável da película.
Se tudo o que disse até agora não vos convenceu, deixo-vos com esta última recomendação: “Beasts of the Southern Wild” é, com todas as suas virtudes e defeitos, um filme singular, quasi-poético, como não haverá nenhum outro este ano – e possivelmente esta década. É uma pena perderem a oportunidade de presenciar algo tão peculiar, genuíno e original.
Nota Final:
B+
Realização: Benh Zeitlin
Argumento: Lucy Alibar e Behn Zeitlin
Fotografia: Ben Richardson
Banda Sonora: Dan Romer e Benh Zeitlin
Ano: 2012
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