Dial P for Popcorn: Crítica do Jorge
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terça-feira, 26 de março de 2013

Porque nunca é demais lembrarmo-nos de IN THE BEDROOM (2001)




Esta crítica, por assim dizer, faz parte da rubrica "O Cinema dos Anos 2000" do Keyzer Soze's Place, na qual participo ao lado de outros porreiríssimos bloggers. Espreitem tudo AQUI. Ao Samuel agradeço o convite, aos bloggers a que me junto agradeço a companhia e, sobretudo, os múltiplos ensinamentos que retiro de cada um dos seus textos.



Através de uma história aparentemente inofensiva, Todd Field cria um drama cruel, onde as revelações são lentas, as emoções turbulentas e não há grande catarse ou final feliz – só feridas abertas, bem vincadas e vidas arrasadas, transformadas de um dia para o outro no seguimento de uma enorme tragédia. Uma tragédia bem familiar e por isso mais temível ainda, que poderia acontecer a qualquer um de nós. Uma situação tão confrontante, que catalisa e impulsiona o filme, mexendo com ele de forma bela e complexa, que transparece o ecrã e nos faz também nós sentir a mudança. Uma mudança permanente, definitiva. 


IN THE BEDROOM fala de amor e saudade, de luto e remorso, de ódio, rancor e vingança. No fundo, o filme fala sobre sobrevivência. Não de um ponto de vista primitivo, real, mas sim em relação à forma de estar no mundo, como se a vida destas personagens dependesse disso, da necessidade em voltar a um normal que conheciam anteriormente e ao qual não há ponto de retorno. Esta é a história deste casal, de Matt e Ruth e da penosa e dolorosa adaptação que a sua relação e o seu mundo vão ter que sofrer. Duas brilhantes interpretações de Sissy Spacek e Tom Wilkinson, que connosco partilham tudo o que sentem e pensam. Emoções tão profundas e internalizadas e ao mesmo tempo tão facilmente acessíveis, mal escondidas por debaixo da superfície aparentemente estoica e firme, duas personagens imperfeitas e reais, gente boa, trabalhadora e gentil, simplesmente a viver a sua vida dia após dia. 


Um dos dramas mais fascinantes do início do século XXI e seguramente um dos melhores da década, IN THE BEDROOM reúne todas as qualidades do cinema independente norte americano – excelente elenco, com muitos actores talentosos subaproveitados pela indústria (como a fabulosa Marisa Tomei), bons valores de produção e um argumento desafiador, fugindo às fórmulas convencionais, tudo a baixo custo – e tem em Field um timoneiro com uma seriedade e certeza pouco comuns num realizador-argumentista à frente do seu primeiro filme. Um caso sério de sucesso, confirmado pela aclamação crítica, pela receita de bilheteira surpreendentemente estrondosa (36 milhões de lucro só nos Estados Unidos da América!) e as cinco nomeações aos Óscares, de visualização obrigatória.


*Uma adenda ao texto: sim, eu teria votado nos três actores (Spacek, Wilkinson, Tomei) nos Óscares. São enormes, cada um deles. E a Sissy Spacek come o cenário, a tela, tudo. Genial.

sábado, 1 de setembro de 2012

SINGIN' IN THE RAIN (1952)



Nunca consigo explicar muito bem o que SINGIN' IN THE RAIN me faz sentir quando o vejo. Longe de ser um filme perfeito, a obra-prima de Donen e Kelly é, mesmo nos dias de hoje, tão infecciosamente alegre e excitante como era há sessenta anos atrás. É uma experiência única e poderosa e uma que, mesmo depois de várias visualizações, nunca perde magia - o puro sentimento de felicidade está sempre lá. Não há dúvidas sobre a razão pela qual este filme é largamente considerado o maior musical de sempre e está na grande maioria das listas de filmes mais amados do cinema. É assim tão bom.


SINGIN' IN THE RAIN é um dos meus filmes favoritos para me recuperar depois de um dia exaustivo ou num dia em que esteja mais melancólico ou aborrecido. Nunca me deixa de espantar o quão simplista, divertido, feliz e refrescante é este filme e sempre que o vejo acabo por cantar e trautear as suas canções por horas a fio, desde a clássica "Singin' in the Rain" à mais animada "Good Morning" ou a ridícula "Moses Supposes" (não esquecer o incrível número de comédia física e improviso que O'Connor protagoniza - "Make'em Laugh" - numa classe própria de excelência).


Apesar de leve e confortável, SINGIN' IN THE RAIN é um produto muito original, colorido, enérgico e brilhante. A maioria da minha confessa admiração vai para os três protagonistas - o estonteante Gene Kelly,  o irreal Donald O'Connor e a formidável Debbie Reynolds, na altura com apenas de 19 anos mas a aguentar-se com classe frente a dois gigantes da indústria (a miúda canta, dança e representa como poucos).  Eles cantam e dançam e dão um espectáculo extraordinário - algumas daquelas coreografias são demasiado fantásticas, ainda para mais em 1952 e sem duplos - e fazem-no parecer tão fácil e simples. Jean Hagen completa o sensacional elenco da película com a sua Lina Lamont (nomeada ao Óscar) e apesar desta personagem ser um pouco unidimensional (ela não consegue dançar, não consegue cantar, não consegue representar e ainda por cima é uma daquelas estrelas arrogantes e insuportáveis e idiotas), Hagen envolve-a em muito mais numa performance bastante inspirada. O resto parte de uma história incrivelmente modesta mas muito inteligente sobre pessoas que fazem filmes e o seu imenso amor e orgulho em fazê-lo, mesmo que isso signifique abdicar de velha glória e adaptar-se para pertencer a uma nova era numa indústria sempre em evolução e que vinha-se apercebendo do potencial do som no cinema. É no fundo uma celebração bem humorada e jubilante deste famoso período de transição em Hollywood - que acaba por usar música para provar o seu ponto de vista que a arte - e as pessoas que a produzem - precisam de evoluir. 







Nota:
A

Informação Adicional:
Realização: Stanley Donen, Gene Kelly
Argumento: Adolph Green, Betty Comden
Elenco: Gene Kelly, Donald O'Connor, Debbie Reynolds, Jean Hagen, Millard Mitchell
Música: Lennie Hayton
Fotografia: Harold Rosson
Ano: 1952

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

WEST SIDE STORY (1961)

"All the world is only you and me."

Por várias vezes, a sétima arte declarou a morte do seu género mais rico e mais prestigiante, o musical. Depois de "Wizard of Oz" ter encantado milhões e "Singin' in the Rain" nos ter dado vontade de sair à rua e cantar enquanto gotas frias de chuva nos caem em cima, alguns falhanços de bilheteira como "Oklahoma!" ou "South Pacific" ou mesmo os cintilantes "A Star is Born" de Cukor e "Gigi" de Minnelli - hoje em dia considerados dos melhores musicais de sempre, galardoados com várias nomeações pela Academia mas ignorados na altura pelo grande público - puseram em causa o quanto o público ainda apreciava um grande espectáculo de luz, cor, música e dança. O que o cinema musical precisava, então, era de um enorme êxito cuja ressonância junto do público faria os estúdios acreditar de novo no poder da música. E eis que é assim que surge o famoso e muito premiado (vencedor de dez Óscares da Academia, só atrás de "Return of the King", "Titanic" e "Ben Hur" que ganharam onze) "WEST SIDE STORY", que pega nos conceitos básicos do romance "Romeu e Julieta" de William Shakespeare e cria uma história para recordar todo o sempre e um dos pares românticos mais inesquecíveis de todos os tempos, Tony e Maria.


Com uma energética e dinâmica Nova Iorque nos anos 50 como pano de fundo, "WEST SIDE STORY" foca-se na relação tempestuosa entre dois gangues rivais: os Jets, compostos por descendentes dos imigrantes europeus que se estabeleceram na América no início do século, liderados por Riff (Russ Tamblyn) e os Sharks, recém-chegados porto-riquenhos em busca do sonho americano, liderados por Bernardo (George Chakiris). O filme transforma assim a disputa de duas famílias rivais numa luta entre duas classes sociais distintas, revolucionando a narrativa em termos da sua mensagem, abordando tópicos como o roubo, a delinquência juvenil, a xenofobia e o racismo e conferindo-lhe um estilo muito próprio, bem diferente do romance trágico de Shakespeare, embora conservando os seus fios narrativos essenciais - e adicionando-lhe um toque bem refrescante e inovador, transmitindo as suas ideias sob a forma de música e dança.


No meio da disputa entre os dois gangues encontram-se Tony (Richard Beymer), o melhor amigo de Riff, que apesar de ter abandonado os Jets e decidido procurar trabalho e subir na vida, vê-se envolvido na confusão a pedido de Riff, que põe em questão a sua amizade, e Maria (Natalie Wood), irmã de Bernardo, trazida há bem pouco tempo para a América para poder desposar Chino, o braço-direito de Bernardo, contrariando a vontade de Maria e da sua namorada Anita (Rita Moreno), amiga e confidente de Maria. A falta de química dos dois protagonistas seria, à partida, essencial para o sucesso da história (e atenção que eu sou um enorme fã de Natalie Wood, por isso custa imenso estar a criticá-la); todavia, o espírito e a graça de Rita Moreno e o estilo e irreverência de Russ Tamblyn e George Chakiris convencem-nos a ignorar essa grande fraqueza e a apreciar outros factores que ajudam, no fim de contas, o filme a capturar na perfeição a ingenuidade e a despreocupação da juventude.

 
Apesar da visão ambiciosa por detrás do filme e do grande potencial que tinha, o resultado final peca em defeito. O diálogo sofre de clara falta de inspiração e talento de escrita, servindo apenas como guideline e intermissão entre momentos de música e dança, mas funciona perfeitamente para o propósito do filme (como conseguiu ser nomeado para Melhor Argumento Adaptado eu nunca hei-de saber). Como que a compensar, as cenas musicais, tão igualmente elogiadas (pela crítica) e criticadas (pelos actores, que viram as cenas ser repetidas vezes sem conta pelo realizador Jerome Robbins, que no seu perfeccionismo acabou por ser despedido por ultrapassar o orçamento), são de absoluto encanto e charme. Se "Tonight" e "I Feel Pretty" fazem hoje parte do nosso imaginário (as gerações mais novas reconhecerão estas músicas seguramente pelas suas adaptações na série televisiva "Glee"), "America", "Cool", "Prologue" e "Something's Comin'" são, para mim, os três números musicais definidores do ambiente do filme, a tresandar de paixão, de alma, de fogo e de alegria. As vozes que Marni Nixon e Jimmy Bryant "emprestam" a Natalie Wood e Richard Beymer fazem maravilhas em "Tonight", é certo, mas é a exuberância e a energia de Rita Moreno e George Chakiris em "America" que fazem deste filme tão especial. Curiosamente, as quatro músicas que preferi destacar são as quatro coreografias que Jerome Robbins completou antes de abandonar o filme. São hilariantes, excitantes e fortíssimas, geniais no seu conceito e execução, de facto. Às músicas mencionadas junto ainda a brilhante sátira feita à idiotice e inércia das forças policiais em "Gee, Officer Krupke". Stephen Sondheim e Leonard Bernstein são, sem dúvida, dois dos maiores compositores de sempre.


Merecido vencedor, em 1962, dos Óscares de Melhor Filme, Melhor Realizador (a primeira de apenas duas vezes que uma parceria de realizadores venceria o prémio; os outros foram os irmãos Coen em 2007), Melhor Actor Secundário (Chakiris) e Melhor Actriz Secundária (Moreno), Melhor Banda Sonora, Melhor Fotografia, Melhor Direcção Artística, Melhor Guarda-Roupa, Melhor Edição e Melhor Som, "WEST SIDE STORY" é uma experiência absolutamente inesquecível e indescritível, repleto de momentos musicais arrebatadores e cenas de dança de cortar a respiração, com uma conclusão agridoce que é, contudo, bastante realista (talvez o meu principal problema com o filme, o facilitismo com que chega a empurrar a sua mensagem para o centro da narrativa, perdendo assim o final do filme - quase - toda a sua potência): com o coração cheio de ódio não se vai a lado nenhum. Gostava que o filme tivesse sido mais risqué e menos politicamente correcto e fã do final feliz. Ainda assim, constitui um feito notável e uma das maiores produções de sempre do cinema americano, uma que tem lugar em qualquer lista dos melhores filmes de sempre. Como musical, nunca desaponta. Como filme... Depende do que se pretender retirar dele.


Nota:
A-

Ficha Técnica:
Realização: Jerome Robbins, Robert Wise
Argumento: Jerome Robbins, Arthur Laurents, Ernest Lehman
Elenco: Natalie Wood (voz: Marni Nixon), Richard Beymer, Rita Moreno, George Chakiris, Russ Tamblyn, William Bramley, Ned Glass
Música: Leonard Bernstein, Irwin Kostal
Fotografia: Daniel L. Fapp
Ano: 1961

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

MOULIN ROUGE! (2001)


"Spectacular! Spectacular!"




Dez anos depois, é inacreditável o quanto ainda me diz "Moulin Rouge!". O festival de luz, cor e espectáculo de Baz Luhrmann continua a ser, mesmo volvida uma década, um dos filmes mais satisfatórios e impressionantes de sempre. Desde o momento em que a música começa e a visão de Luhrmann de Paris entra no ecrã, um feitiço parece que me trespassa e me encanta e fico como que vidrado, a apreciar o dom visual do talentoso realizador. Não dá para desviar o olhar por um segundo - sob pena de perder vários momentos de magia.


O filme narra o romance épico de Satine (Nicole Kidman) e Christian (Ewan McGregor), com traços típicos de uma tragicomédia que vai da tristeza ao êxtase num segundo - tudo isto acompanhado, claro, pelas estilizadas adaptações das maiores baladas do século passado. Christian é um jovem e sonhador escritor que chega à bela Paris em busca de inspiração para o seu próximo romance e que trava uma curiosa amizade com o anão Toulouse-Lautrec (John Leguizamo) que o convence a alinhar no seu esquema de montar um espectáculo "cheio de luz, música e brilho" para Satine, a bela dançarina que é o atrativo principal do clube burlesco Moulin Rouge, propriedade do excêntrico e entusiasmante Harold Zidler (Jim Broadbent). Combinam então que Christian se deve encontrar com Satine e fazer-se passar pelo rico Duque de Worchester que, como previsto, iria financiar o espectáculo que faria dela uma estrela. Desfeita a confusão, o grupo tem que convencer o verdadeiro Duque de Worchester - que quer "pagar" pelos afectos de Satine - a alinhar na sua ideia. O que ninguém sabe, na verdade, é que Satine carrega um pesado segredo que poderá mudar o rumo de toda esta história.


Uma electrificante e inspirada banda sonora, que conta com adaptações de êxitos musicais como "Diamonds Are a Girl's Best Friend" numa estonteante sequência de dança, ou como a mistura efusiva e polvorosa de Paul McCartney, Eagles e Beatles em "Elephant Love Medley" na mais apaixonante cena de toda a película, ou sobretudo, com o arrebatador dueto final "Come What May", numa espécie de rendição final de Satine e Christian, cujo amor irá para sempre perdurar, não importa o que aconteça, em conjunto com a brilhante fotografia de Donald McAlpine - que merece todos os prémios que (não) ganhou - e a frenética edição de Jill Bilcock, que complementa na perfeição o tom histriónico e exagerado e risqué do filme, a mil à hora. Todas as interpretações merecem clara nota de destaque, mas sem dúvida que Nicole Kidman está muito acima das restantes. Ela desaparece completamente dentro de Satine, numa das interpretações mais surpreendentes dos últimos tempos, digna do Óscar que também (não) ganhou. Frágil, delicada e sensível, mas ao mesmo tempo tão forte e decidida, Satine é uma criação inolvidável de uma das maiores actrizes de sempre.

Retratando de forma gloriosa e até poética o que Paris tem de mais romântico e idílico, combinado com números musicais e de dança dignos de uma poderosa alucinação, repleta de eroticismo, cor e comédia, "Moulin Rouge!" é um filme que é impossível esquecer, quer se esteja a ver pela primeira vez ou pela centésima, é tocante, é emocionante, é um turbilhão de emoções fantástico de se vivenciar e experimentar. Nunca mais somos os mesmos - tal como aconteceu a Christian quando foi apresentado ao Moulin Rouge. 


Nota:
A

Ficha Técnica:
Realização. Baz Luhrmann
Argumento: Craig Pearce, Baz Luhrmann
Banda Sonora: Craig Armstrong
Fotografia: Donald McAlpine
Ano: 2001
 




terça-feira, 2 de agosto de 2011

GOSFORD PARK (2001)



"I haven't a snobbish bone in my body!"

A aristocracia britânica nunca teve tanta pinta como no fenomenal "Gosford Park", o penúltimo filme do grande Robert Altman, mestre director de actores, autor consagrado de brilhantes obras-primas como "Nashville", "The Player" ou "Short Cuts". Altman, cujo estilo experimental parecia, à primeira vista, uma combinação desastrosa com o controlado e meticuloso período aristocrático, surpreende todos com um filme que não só é inteligente, audacioso e divertido como também uma análise sofisticada e bastante pejorativa ao sistema de classes hierárquicas britânicos. Pelo meio, Altman reúne um grupo de actores de incontornável talento que só engrandecem ainda mais o resultado final da película. Com Altman, "Gosford Park" não é só o retrato de um homicídio que decorre durante uma festa. É ser convidado para essa mesma festa e poder testemunhar e tirar conclusões por nós mesmos.
"Gosford Park" passa-se então em Novembro de 1932, na luxuosa mansão de Gosford Park, na qual os seus proprietários, Sir William McCordle (Michael Gambon) e Lady Sylvia (Kristin Scott-Thomas) juntaram vários familiares e conhecidos para um fim-de-semana de caça e convívio. Entre os convidados encontrava-se a irmã de William, Lady Constance Trentham (Maggie Smith), uma velha snobe e empertigada com mania de endeusamento que só atura o irmão pela pensão mensal que este lhe dá, o seu primo Ivor Novello (Jeremy Northam), uma estrela de Hollywood que consigo traz o produtor Morris Weissman (Bob Balaban) - que procurava estudar uma família de classe alta britânica como base para o seu próximo argumento - e o seu valete, Henry Denton (Ryan Philippe), as irmãs de Lady Sylvia, Lady Louisa (Geraldine Sommerville) e Lady Lavinia (Natasha Wightman), casadas respectivamente com Commander Anthony Meredith (Tom Hollander) e Lord Raymond Stockbridge (Charles Dance), nenhuma das duas - tal como a irmã - casou por amor mas sim por dinheiro.


Entretanto, no andar de baixo, os criados e servos da casa procuravam acomodar os serviçais que acompanhavam os respectivos convidados, tratados pelo nome do seu patrão, "de acordo com os velhos costumes que a casa segue". Assim, Henry passa a ser tratado por Mr. Weissman e conhecemos ainda a novata e inexperiente nestas lidas Mary , entretanto renomeada Miss Trentham (Kelly Macdonald) e Robert Parks Mr. Stockbridge (Clive Owen), que travam conhecimento com o pessoal da casa, liderado pela governanta, Mrs. Wilson (Helen Mirren), pelo mordomo Mr. Jennings (Alan Bates), pela chefe das camareiras, Elsie (Emily Watson), pela cozinheira Mrs. Croft (Eileen Atkins), pelo chefe dos valetes, Probert (Derek Jacobi) e por Mr. Croft, o faz-tudo (Richard E. Grant). Confuso com tanta personagem? Não há confusão possível - porque Altman nunca nos permite saber mais do que é necessário para apreciar a personagem. Aqui não é preciso compreender os seus motivos - é só deixar-se levar pelos incidentes. E há, de facto, diversos incidentes ao longo das duas horas de enredo. Como já mencionei, Sir William, um homem desprezível e rude, de quem depende (ingratamente) toda a família, é assassinado após o jantar, quando se retira para a sua biblioteca para descansar em paz depois de um jantar algo enervante. 


O filme flui de forma impressionante, sem momentos aborrecidos e envolvendo-nos e tornando-nos cúmplices das histórias e das vidas de cada uma destas pessoas. Faz-nos sentir que nos encontramos realmente a jantar com a nata da aristocracia britânica ao mesmo tempo que parecemos sentir-nos em casa no andar de baixo, a ouvir detrás das portas e a guardarmos os segredos tanto dos patrões do andar de cima como dos serventes do andar de baixo. Toda a gente tem segredos ("Everybody has something to hide", como muito bem diz Probert) - mas, curiosamente (e Altman usa e abusa ironicamente deste pormenor), ninguém tem vida própria. Todos os empregados parecem satisfeitos e contentados com a vida que têm e todos os aristocratas do andar de cima se sentem felizes com esta vida de fingimento e de secretismo na qual tudo o que parece não é. Uns com problemas financeiros, outros com traições e adultério, todos à sua maneira têm problemas. Até o par de investigadores que vem resolver o crime parece saído de um folhetim ou telenovela: o investigador Thompson (Stephen Fry) é o típico chefe incompetente, mais preocupado em passear o seu pomposo ar e fumar o seu chique cachimbo do que procurar por pistas, cometendo até o faux pas de se virar para os empregados da casa e dizer "não se preocupem, ninguém do andar de baixo me interessa, não são ninguém importante". Já Dexter, o seu assistente, aponta incessantemente potenciais pistas em busca de ser elogiado mas acabando sempre ignorado.


Servido com um sentido de humor apudaríssimo a puxar o sardónico, a imaginativa e inteligente construção da narrativa de "Gosford Park" é um verdadeiro testemunho à qualidade do argumento de Julian Fellowes e à visão de Robert Altman, que criou esta ideia com Balaban e explorou a fundo as suas potencialidades. Este filme, que quase se pode considerar (erradamente, aviso) uma versão cinematográfica do grande jogo de tabuleiro Cluedo, é uma autêntica lufada de ar fresco no género de prestige/pedigree britânico que tipicamente nos oferecem as terras de Sua Majestade todos os anos. O revolucionário Altman não deixa que isso aconteça, criando faísca e mobilidade em todas as suas cenas, acompanhando vários personagens ao mesmo tempo, de forma fluída e confiante, como se realmente estivesse na sala com elas e nos estivesse meramente a mostrar o que observa.


Um enorme director de actores, Altman pega no potencial talento em bruto que tem e faz magia. Ninguém consegue convincentemente retratar aristocratas com ironia ácida e pedantes rabugentos como Maggie Smith, da mesma forma que ninguém expressa tão bem uma resposta torta como Maggie Smith - o interlúdio entre ela e quem está sentado à sua mesa, enquanto Novello toca piano, é genialmente cómico; a forma como ela numa primeira fase inocentemente diz "Do you think he'll take just as long as he usually is?" e, mais tarde, quando o aplaudem ela veementemente diz "Don't encourage him!" é tudo o que precisamos saber da personagem. Aliás, as interacções entre ela e Novello são dos momentos mais hilariantes de toda a trama, com ela, que não suporta o charme e a presunção dele, a pô-lo no seu lugar relembrando os seus últimos filmes como fracassos e, à mesa, referindo que ninguém dali veria os seus filmes, portanto não haveria porquê discuti-los com eles. Helen Mirren, Kristin Scott-Thomas, Emily Watson, Michael Gambon, Clive Owen e Kelly Macdonald cumprem imaculadamente os seus papéis e até Ryan Philippe me surpreende pelo à vontade e pela lata do seu personagem. Contudo, sendo este um largo elenco e todos com oportunidades de brilhar, é um grande desserviço estar a seleccionar uns e não outros. Maggie Smith é claramente o destaque - mas não é a única. A fotografia e a banda sonora são sumptuosas e delicadas, tal como a película requeria, todavia aqui o verdadeiro herói - em termos técnicos - é Squyres, o editor, que cola na perfeição todas estas interacções e nunca nos faz saltar um batimento.


Labiríntico, claustrofóbico, denunciador, "Gosford Park" é um filme completamente ao estilo de Robert Altman, ainda que não pareça à primeira vista: é um filme bem mais preocupado com as personagens, as situações e os seus sentimentos do que com o fio narrativo. Até o assassinato passa para segundo plano, tal é a diversidade de conversações que podemos presenciar, das confusões que podemos testemunhar, dos segredos que podemos desvendar. 


Nota:
A-

Ficha Técnica:
Realizador: Robert Altman
Ano: 2001
Argumento: Julian Fellowes, Robert Altman, Bob Balaban
Fotografia: Andrew Dunn
Banda Sonora: Patrick Doyle

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Especial Animação: THE LITTLE MERMAID (1989)



"Watch and you'll see... One day I'll be... Part of your world."


Em busca de renascer de um período negro de parca qualidade a nível dos seus estúdios de animação, a Disney decidiu, em 1989, fazer regressar um dos tipos de histórias mais queridos do seu público-alvo: os contos de fadas. E para isso apostou numa história que já havia passado pelas mãos de Walt Disney e por vários argumentistas dos estúdios mas que havia sido arquivada e descartada. Era uma história baseado num conto algo sombrio de Hans Christian Andersen sobre uma sereia que sacrificava os seus dons mais preciosos para poder viver uma vida normal como humana ao pé do homem que amava. Essa história era, como hoje sabemos, "The Little Mermaid" e seria ela que iria trazer uma nova alma e glória aos velhos estúdios Disney e provocar uma revolução que culminaria no seu período mais inspirado de sempre.


Até em termos do processo de desenvolvimento e produção do filme se nota uma diferente inspiração e positivismo no ar. Howard Ashman e Alan Menken juntaram-se de bom grado ao projecto para produzir uma das melhores bandas sonoras que um filme de animação alguma vez viu; Glen Keane, um dos maiores animadores dos estúdios, que normalmente se dedicava a desenhar e animar figuras mais masculinas e normalmente vilãs pediu veementemente que o deixassem animar a protagonista Ariel. E muitos outros exemplos - se estiverem interessados - podem ser vistos no documentário "Waking Sleeping Beauty", que conta a história da nova era da animação Disney.


"THE LITTLE MERMAID" é, mais que um retorno ao grandes velhos clássicos de animação de outros tempo, uma divertida (diria festiva até) e curiosa aventura repleta de sonhos, de criatividade, de imaginação que nos deixa encantados e hipnotizados. O filme narra a história de Ariel, uma sereia diferente do habitual, cujo sonho era virar humana para poder encontrar-se com o homem que amava, o príncipe Eric, que ela uma vez salvara de morte certa e por quem ele se apaixonou ao ouvir cantar. Claro que tal conto de fadas era impossibilitado pela diferença de espécies de ambos. É aqui que a história do filme diverge do conto de Christian Andersen, criando um fio narrativo secundário no qual nos apresenta a malvada vilã Úrsula, permitindo a Ariel trocar o seu maior dom pela possibilidade de viver uma vida normal como humana. O que Ariel não sabe é que Úrsula deseja o trono do seu pai, Tritão, rei dos sete mares e pretende assim usá-la como moeda de troca.



O que tantas vezes falhou nos filmes dos estúdios que precederam este "The Little Mermaid" é, neste caso, o seu ponto forte: a caracterização das personagens, em especial de Ariel e Úrsula. Ariel é, acima de tudo, uma protagonista realista e credível. Não é uma heroína passiva, que desespera sem nada fazer em busca do seu príncipe encantado e que é impedida, de alguma forma, pelo vilão, de atingir o seu objectivo. Não. Ariel é rebelde, tem defeitos, nem sempre toma as melhores decisões e não aceita injustiças. Ela pensa e age independentemente, o que nos leva desde logo a simpatizar com a sua história e com a sua angústia. Para isso ajuda muito que Ashman e Menken tenham ressuscitado um dos velhos costumes dos grandes clássicos de outrora: a canção central que estabelece o objectivo da protagonista e em que ela nos abre as portas do seu coração. E ajuda sobretudo que essa canção seja "Part of Your World", uma lindíssima balada que nos despedaça o coração pela cintilante e alegre voz de Jodi Benson. 


O outro grande ponto forte é, sem dúvida, o detalhe e o cuidado que os animadores e os argumentistas tiveram em conferir bagagem ao vilão. Úrsula é, também ela, uma personagem realista e completamente formada, com uma história e um fio narrativo bem estabelecidos e, com uma grande actriz e voz por detrás como Pat Carroll, uma brilhante comediante e diva dramática. Cada fala que sai da sua boca é dita com tanta faísca, tão carregada de segundas intenções, que nos faz sorrir mesmo não querendo. E, claro, mais uma vez Ashman e Menken realizam um fabuloso trabalho criando aquela que é, para mim, a melhor canção que a um vilão alguma vez foi permitido cantar num filme da Disney: "Poor Unfortunate Souls". A canção é rica em piadas, em mensagens nas entrelinhas, em poder, força e vigor. Três minutos depois e Úrsula é, perante nós, igual a uma qualquer pessoa que todos nós conhecemos (ou vamos conhecer) ao longo da nossa vida: uma diva diabólica, invejosa, vaidosa, manipuladora, descarada e ambiciosa.



Apesar destes indiscutíveis méritos, o argumento nunca deixa esmorecer o calibre do filme. Inteligente e cheio de reviravoltas mais ou menos inesperadas, tem ainda o mérito extra de nos apresentar mais personagens secundárias que nos envolvem ainda mais no filme, como o stressado e disciplinador caranguejo Sebastião e o alegre e engraçado Linguado (Flounder na versão original) e a distraída e precipitada gaivota Sabidão (Scuttle) que providenciam vários momentos de descontracção e de riso, bastante necessários para dosear os momentos mais sérios da segunda metade da película. A animação, essa, é energética, refrescante, colorida e inovadora, que explora na perfeição os belíssimos cenários marítimos e cria um majestoso e impressionante castelo para o príncipe Eric, conferindo um pano de fundo riquíssimo em termos visuais para a história se desenvolver. Finalmente, voltar a falar (porque nunca é demais) de Howard Ashman e Alan Menken. Prodigiosos talentos da música, Ashman e Menken foram uma verdadeira lufada de ar fresco na animação contemporânea (como se veio a comprovar mais tarde), contribuindo, além da música, com várias ideias e mudanças a nível da animação do filme. "Part of Your World" e "Poor Unfortunate Souls" seriam razão suficiente para aplaudir uma fantástica banda sonora, mas quando esta ainda contém músicas tão inesquecíveis como a contagiante e reggae-esca "Under The Sea", cantada sublimemente por Samuel Wright e as maravilhosas músicas de abertura e encerramento do filme, é um acontecimento mesmo raro.


Muitas vezes se usa descuidadamente as palavras "inspiração" e "êxito" para definir muita coisa na vida. No entanto, no caso de "The Little Mermaid", somos obrigados a admitir: é o clássico da Disney mais orgânico e apaixonado, mais contagiante e envolvente, mais inspirado e revolucionário. Não é por nada que num ano bastante competitivo chegou a ser considerado como um dos grandes candidatos ao Óscar de Melhor Filme (criando o buzz que levaria a que isso acontecesse para o próximo filme da dinastia Disney, "Beauty and the Beast"). E não é por nada que, ainda hoje, muitas crianças se deixem levar e encantar pelas aventuras de uma marota sereia que só queria, na verdade, ser parte do nosso mundo, ser igual a qualquer um de nós.



Nota: 
A-

Ficha Técnica:
Realização: Ron Clements, John Musker
Ano: 1989
Elenco: Jodi Benson, Kenneth Mars, Pat Carroll, Samuel Wright, Rene Auberjonois, Buddy Hackett
Música: Alan Menken, Howard Ashman

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Especial Animação: GRAVE OF THE FIREFLIES (1988)



Poucos filmes vi eu na minha vida tão profunda e humanamente depressivos como este. E poucos filmes vi eu também com uma mensagem social anti-guerra tão vincada quanto realista.  Um dos primeiros filmes dos nipónicos Studio Ghibli, lançado no Japão a par com o decididamente mais alegre "My Neighbour Totoro" de Miyazaki, como forma de contrabalancear com o seu pesado dramatismo, "Grave of the Fireflies" é a obra definidora de Isao Takahata e, mais que tudo, é o filme que abriu novos horizontes no que é possível fazer com a animação contemporânea (abrindo caminhos para que filmes como "The Lion King", "Princess Mononoke", "The Iron Giant", "Toy Story", "Up!", entre outros, tenham podido abordar temas mais sérios, considerados antes impróprios em filmes para crianças).


"Grave of the Fireflies", baseado no romance semi-autobiográfico com o mesmo nome de Akiyuki Nosaka, conta uma história relativamente simples e directa de sobrevivência e persistência, relatando a história de dois irmãos, Seita e Setsuko, órfãos de pai e mãe, vítimas dos ataques americanos à população de Kobe durante a II Guerra Mundial. A história é contada em analepse, começando no momento em que Seita perece de fome e malnutrição. O empregado de limpeza da estação de comboio atira fora uma lata de rebuçados de cai das mãos de Seita, que continha cinzas e pequenos ossos. Deles surge o espírito de Seita e de Setsuko e uma nuvem de pirilampos e é a partir daqui que a narrativa retrocede no tempo, para nos dar a conhecer a sua história.


Não querendo adiantar grandes pormenores da história, Seita e Setsuko vêem-se privados da sua mãe quando esta é uma das vítimas de um ataque aéreo por avionetas americanas à região, falecendo dias depois por queimaduras múltiplas. Uma vez que o seu pai se encontra na Marinha, são deixados ao cuidado da sua tia. Esta tia é uma das personagens mais curiosas de todo o filme, uma vez que é através da mudança comportamental dela que Takahata nos permite ver como a sociedade, no geral, iria reagir a uma situação de crise, de fome, de pobreza, de guerra. A tia, outrora alegre e contagiante, vai ficando mais triste, com o sorriso cada vez mais cerrado e vai implicando cada vez mais com os dois sobrinhos que adoptou, até ao ponto de praticamente os expulsar de casa. Seita e Setsuko abandonam a casa da tia e improvisam um lar num abrigo anti-bomba abandonado. No entanto, aquilo que seria uma solução alegre para ambos os problemas torna-se um problema em si mesmo, quando as crianças, a passar cada vez mais fome e a ter de recorrer a meios cada vez mais desesperados para conseguir subsistir, descobrem que Setsuko está doente e que, com o final da guerra, o seu pai teria feito parte de um dos navios afundados. 


Extremamente gráfico e com um poder emocional de nos arrancar as entranhas e abraçar o coração, "Grave of the Fireflies" não é para todos. Trágico, deprimente e desprovido de qualquer sentimento positivo, é na sua mensagem anti-guerra que reside a sua riqueza. Ao retratar de forma tão dura, realista e pessimista as consequências negativas da guerra para a sociedade, o filme não procura ser sentimentalista ou melodramático - pretende, isso sim, mostrar as coisas como elas são. A realidade raramente é simpática. Este é um filme sobre a guerra, sobre a fome e a pobreza, sobre a sociedade e sobre a humanidade, que por acaso calhou ser animado. É um filme que não puxa pelas lágrimas; somos compelidos a jorrá-las, tal é a intensidade dramática do que testemunhamos no ecrã.

O filme perde tempo em alguns momentos soberbos, de uma beleza inqualificável, vitais para nos obrigar a reflectir e a meditar, para nos apaixonarmos pelas personagens e temermos pelo seu futuro, para sermos apanhados de surpresa pelo fim pesaroso e percebermos que é, afinal, aquele o fim de muitas famílias apanhadas em território de guerra.


E a relação tão bem caracterizada e estabelecida dos dois irmãos é, para mim, o grande ponto forte e força motriz do filme. A forma como Seita é repetidamente colocado à prova e a sua reacção difere em várias alturas durante o filme é sublime, além de que é verdadeiramente enternecedor - e, sabendo do final, absolutamente avassalador - ver como os dois se são bem e ver a forma como Seita protege Setsuko da realidade alinhando nas brincadeiras e criando uma espécie de mundo à parte só para ela, onde nada lhes acontece e onde tudo fica bem. Não tenho vergonha em admitir que foi um dos filmes que mais vontade me deu de chorar. Lágrimas de luto, de quem tem o seu coração partido pelo que vê suceder sem poder fazer nada. "Grave of the Fireflies" promete ser uma experiência emocional poderosa que vos vai perseguir para sempre. E é por isso, acima de tudo, que eu aconselho toda a gente a vê-lo. Vale a pena - mesmo que depois disso não consigam alegrar-se com nada por umas horas.

Deixo-vos ficar abaixo com o tema final da banda sonora.



Nota:
A

Ficha Técnica:
Ano: 1988
Realizador: Isao Takahata


quinta-feira, 31 de março de 2011

PSYCHO (1960)


Este artigo faz parte da minha participação na rubrica do The Film Experience Blog de Nathaniel Rogers, "Hit Me With Your Best Shot", na qual é-nos requerido escolhermos uma imagem icónica do filme em discussão nessa semana e justificar a nossa opinião. Esta semana a película em análise é um dos filmes mais reconhecidos universalmente, a fantástica obra-prima de Hitchcock, PSYCHO. Espero que gostem, de qualquer forma e que se juntem à conversação - e que vos incite a ver o filme. AVISO: Pode conter 'spoilers' uma vez que não é bem uma crítica mas uma análise ao filme.




O pormenor que considero mais fascinante em torno de PSYCHO é a minha firme crença de que o seu realizador, Alfred Hitchcock, soube desde sempre que este filme, cinquenta anos após a sua produção, iria estar tão enraizado na cultura popular que nunca mais ninguém iria olhar para filmes de terror, para cenas de chuveiro e para o matricídio da mesma forma. PSYCHO é, na sua mais pura essência, uma experiência aterrorizante, excitante, envolvente, que nunca perde o seu poder e potência seja esta a primeira vez que o vemos ou a décima.

 
Quando vemos a mulher à janela na mansão assustadora e de aspecto  decrépito e misterioso onde vivem os Bates pela primeira vez, não podemos deixar de ponderar na sua possível omnipresença na trama daqui para a frente. A expressão de estranheza, de curiosidade leve e cautelosa (tendo em conta o que sabemos hoje em dia de vultos em janelas sombrias no meio da noite, não seria a nossa expressão facial também parecida?) no rosto de Marion Crane (uma interpretação imensamente detalhada por parte da talentosa Janet Leigh), que havia fugido de Phoenix com 40,000 dólares roubados e que, em direcção a Fairvale para se encontrar com o seu amante Sam, por se encontrar cansada e assustada da viagem, decide pernoitar no Motel Bates, é também ela denunciadora. 

 
Mal sabia Marion que se encontrava a meros minutos de sofrer uma das mortes mais infames da história do cinema; no entanto, parece que ela adivinhava que, depois de todas as tribulações e confusões na viagem (uma das grandes delícias da sua interpretação são as diversas expressões faciais que exibe enquanto é perseguida pela polícia e quando está a abandonar a cidade e o seu patrão a vê de relance, denunciando o seu crime), seria esta a mulher que lhe iria trazer o seu triste fim.


Antes de morta, porém, Marion trava conhecimento com Norman Bates (Anthony Perkins), o responsável pelo motel. Bates é um sujeito invulgar. Tenta fazer passar-se o máximo por uma pessoa normal e quase consegue - isto é, até ao momento que Marion começa a fazer-lhe perguntas pessoais. A psique de Bates é uma coisa fascinante de se observar - a forma despreocupada com que fala do seu dia-a-dia, da sua solidão, da sua paixão pela taxidermia, é trocada de repente por gélidos olhares, fala entredentes, sorrisos nervosos e confusão e incongruência no discurso. Impressionante é ver que Janet Leigh consegue usar esses traços de personalidade de Bates para contar mais acerca da sua própria personagem: as dentadas nervosas que dá na sanduíche, os olhares de soslaio que faz, o contacto íntimo que procura até perceber que falou demasiado... Muito perspicaz.


Eventualmente, como em qualquer filme do senhor Alfred Hitchcock, temos que chegar à parte dos assassinatos. E falando de mortes... Esta é uma daquelas que impressiona. Para azar e infortúnio de Marion Crane, a sua jornada acaba aqui - este é o seu destino - e parece-nos a nós que sempre o fora desde o momento em que ela pôs os pés neste motel. A inocente e ingénua Marion toma despreocupadamente banho de chuveiro quando tudo acontece. O resto, é história. A banda sonora de Herrmann alterna entre a melodia sombria e arrepiante que pauta toda a película para uns sons mais estridentes e assustadores. Um vulto aproxima-se por detrás da cortina, segurando uma faca. Marion grita. Ninguém ouve. Repetidas facadas são vistas (como se sabe, Hitchcock decidiu filmar esta cena sem que uma facada ou jorro de sangue se visse, porque achava que o público da altura não suportava ver grande quantidade de sangue) e o fim prematuro de Marion chegou. Num último movimento, ela puxa a cortina da banheira. Simbolicamente, sangue a jorrar da vítima  é lavado pela água do chuveiro e ambos rodopiam pelo cano abaixo. Um close-up final do olho cintilante, sem vida de Marion é-nos proporcionado.


Quando Bates (ouvimos) descobre a mãe coberta de sangue, corre até à cabana procurando impedir o pior, mas este já está feito - e quando ele a desvenda, não há como não ficar horrorizado pelo cenário atroz e macabro. Atrás de Marion já anda meio mundo e dias depois é a ver de Arbogast (Martin Balsam), um investigador privado, chegar ao Motel Bates. Também ele iria ser surpreendido pela Morte, pouco depois de ter informado Lila Crane (Vera Miles), a irmã, e Sam Loomis (John Garvin), o amante, que ela teria aí sido vista pela última vez. Quando ele não regressa, não havia como Lila e Sam ficarem desconfiados e procurarem fazer justiça pelas próprias mãos.


É nestas cenas de busca dos dois na casa dos Bates que dá para ver melhor aquilo que eu mais gosto nos filmes de Hitchcock - a forma como testa o índice de medo da audiência, a forma ilimitada com que aborda os nossos medos mais primários, mais básicos, mais fundos da nossa alma. O jogo de espelhos que tanto aterroriza Lila numa cena funciona de forma semelhante às várias vezes que Marion, mais cedo na película, olha para o espelho para conferir se alguém a segue, e depois quando o polícia surge em repetidas frames à porta da loja de carros usados.  Este estudo do comportamento e da natureza humana que Hitchcock faz em todos os seus filmes é notável - quem diria que nos podemos assustar tanto com algo tão elementar como a ideia de termos alguém a perseguir-nos quando fazemos algo de errado? E a situação em que Lila se encontra - ela que anda a bisbilhotar uma casa que não é sua, a invadir a privacidade de outrem - e ainda por cima numa casa tão mal iluminada, tão assustadora, tão estranha e peculiar - e que a qualquer momento pode ser apanhada... é perfeitamente natural que se tenha assustado ao ver o seu reflexo no espelho por trás dela, pensando que era outra pessoa. Quem é que nunca experienciou sentimentos semelhantes? Certamente já se passou com todos nós. Todos nós já fizermos algo que sabemos que era errado e tememos ser apanhados por fazê-lo.


Mas o que tema ela em concreto? Desde o primeiro momento que surge no grande ecrã que se torna bastante claro que no fim tudo iria girar em torno de Norman Bates. Anthony Perkins interpreta-o de forma magnífica, transformando o que já era uma personagem complexa no papel numa verdadeira sombra humana. Variando entre a personalidade jovem, enternecedora e divertida de algumas cenas e a tristeza, melancolia, dúvida e mistério que pairam no seu rosto noutras, o seu Norman Bates é claramente alguém que não dá para confiar a sério. A forma como pronuncia algumas falas é brilhante. E é fantástico, como disse acima, vê-lo perder-se totalmente quando se aborda assuntos muito pessoais. Ele escapa para outro mundo. Parece ter a cabeça na lua. Perde-se na coerência do seu discurso. Ri-se nervosamente. Fala entre dentes. E perde completamente as estribeiras e a polidez por alguns momentos.  Apesar de achar que o filme dispensava  as cenas com o psiquiatra, sendo que para mim devia ter terminado logo após a mãe ter sido revelada, esta última cena, frente a frente com o assassino, de olhar frio e cruel, de sorriso ironicamente satisfeito, qual louco envolvido pelo seu próprio delírio, é absolutamente preciosa, como que a lembrar-nos de que nem sempre o demónio está nos sítios mais óbvios. Norman Bates tinha uma alta doce e gentil. É pena que esta estivesse consumida e destruída.

No fim de contas, PSYCHO é um melodrama/thriller de grande qualidade e efeito, recheado de interpretações curiosas e poderosas mas onde o realizador é que é a verdadeira estrela. Desde os close-ups do ponto de vista da personagem (em particular a visão dentro do carro), da forma desconcertante de introduzir ironia nos diálogos mais sérios, da surpreendente lata de fazer as personagens sorrir nas situações mais inapropriadas, da extraordinária direcção artística (pássaros assustadores empalhados, anyone?) e escolhas de casting (todos os actores são aquilo que as suas personagens precisavam - mesmo em termos físicos; não há escolhas ao acaso aqui) e a edição perfeita, PSYCHO é realmente uma obra emblemática, uma sinfonia estrondosa de horror e suspense; numa frase, é tudo aquilo que os grandes filmes esperam ser: um filme para todo o sempre, um  filme que resista ao teste do tempo, um filme que desafie e estimule a audiência e, sobretudo, um filme que tenha o orgulho e prazer de se auto-intitular como um dos melhores já alguma vez feitos.

Nota Final:
A

Informação Adicional:
Realização: Alfred Hitchcock
Elenco: Janet Leigh, John Gavin, Vera Miles, Anthony Perkins
Fotografia: John L. Russell
Banda Sonora: Bernard Herrmann
Duração: 109 minutos
Ano: 1960

Trailer:

quinta-feira, 24 de março de 2011

A STREETCAR NAMED DESIRE (1951)


Este artigo faz parte da minha participação na rubrica do The Film Experience Blog de Nathaniel Rogers, "Hit Me With Your Best Shot", na qual é-nos requerido escolhermos uma imagem icónica do filme em discussão nessa semana e justificar a nossa opinião. Esta semana dedicamo-nos a A STREETCAR NAMED DESIRE, a obra-prima de Elia Kazan baseada na peça imortal de Tennessee Williams, cujo centenário do seu nascimento nos encontramos a celebrar esta semana. Uma vez que esta rubrica é feita para um sítio inglês, o artigo tem que ser colocado nas duas línguas. Espero que gostem, de qualquer forma. [N.B.: O texto tem 'spoilers'].



Há tanta coisa que gosto no A STREETCAR NAMED DESIRE (invariavelmente, a obra-prima de Tennessee Williams e um dos melhores filmes do enorme Elia Kazan) que torna tão difícil resumi-lo em meras poucas palavras. É seguramente um dos maiores dramas de sempre. É um dos maiores exemplos de um trabalho de elenco de qualidade da História. É uma peça indissociável do clima cinematográfico dos anos 50, considerado demasiado risqué, controverso, inconveniente, provocante, mas que parece bastante sedado em relação aos tempos de hoje. Nele está presente um confronto interessantíssimo entre dois dos maiores intérpretes que o grande ecrã alguma vez já viu: o defensor do 'method acting', Marlon Brando, num dos seus primeiros papéis de relevo; e a rainha da Velha Hollywood e lenda cinematográfica, Vivien Leigh, que já nos tinha oferecido uma das maiores personagens da História do cinema (estou a falar, claro, de Scarlett O'Hara). Ambos conseguem magníficas interpretações que iriam conduzir, eventualmente, a nomeações para os Óscares da Academia para os dois (aliás, os quatro actores principais da trama viriam a ser nomeados, resultando em três vitórias; só Brando perdeu).


A STREETCAR NAMED DESIRE conta a história de Blanche DuBois, uma dama do Sul  que decide visitar a sua irmã Stella, que vive em Nova Orleães com o seu marido, Stanley Kowalski, um homem rude, animalesco, bruto e mal-educado. Durante a sua estadia na casa da irmã, Blanche é testemunha do forte abuso que a sua irmã tem de aturar por parte do marido, sem esboçar esta qualquer reacção (ela ama-o perdidamente, o que poderá explicar parte desta passividade) - abuso este do qual ela mais tarde virá a ser vítima. O abuso e a tortura que Stanley impõe sobre a doce e sonhadora Blanche destrói o pouco de sanidade que esta ainda possui, levando a que ela seja institucionalizada.


Tennessee Williams tem um dom para escrever para mulher. Consegue ver para lá do óbvio e mostra-nos a sua vulnerabilidade, o seu sofrimento, o seu orgulho, de forma crua e honesta, real.  Blanche DuBois é uma mulher fracassada. Decadente e desavergonhada, como os habitantes de Auriol, a terra onde vivia, fazem questão de a descrever. Narcisista, histérica, pomposa e artificial, Blanche é uma criação mítica que muitas actrizes matariam para interpretar. Que Vivien Leigh tenha sido tão bem sucedida no papel (ainda para mais porque era a única dos quatro principais que não tinha ligação com o espectáculo na Broadway, tendo substituído Jessica Tandy na transformação da peça em filme) diz muito da sua verdadeira qualidade como actriz. Vivien incorpora a sua Blanche de tanta falsa felicidade (as cenas com Mitch (Karl Malden) são uma delícia, tal é  o desvario da sua cabeça), de tanta necessidade e urgência e desejo, balanceando-o com o graciosidade, charme e delicadeza, enquanto nos proporciona uma visão priveligiada da sua dor, da sua psique, que é fenomenal observar a sua abordagem muito única às suas personagens. A peça está desenhada para nos fazer sentir pena dela e da sua irmã; contudo, Leigh imprime sentimentos e emoções e reacções em Blanche que nunca nos permite identificar e simpatizar com a sua história, dando-nos oportunidade para perceber o porquê de tanta implicância de Stanley. Imensamente irritante numas cenas, enternecedora noutras, assim é  Blanche DuBois. Uma criação incompleta - talvez para sempre assim. Uma grande interpretação, de qualquer forma. 


Marlon Brando é também brilhante. Stanley Kowalski é um homem atroz, sem dúvida. Ele bate na mulher, ele berra e discute, ele parte e atira coisas pelo ar, ele mete-se em confusões e lutas só porque lhe apetece e ainda por cima decide que é sua missão torturar mental e fisicamente a sua cunhada. A sua personagem é tão vil, tão violenta e real, tão complicada de ler que se torna impressonante imaginar de que forma vai reagir da próxima vez. A cena em que ele é abandonado na sua casa, no escuro, bêbedo e a chorar por ter batido à sua mulher e os gritos de "Stella!" que se seguem, é de arrancar o coração. Algo que nem devia ser posto em questão (afinal, ele acabara de bater à mulher!), Brando consegue fazer-nos sentir pena e compaixão pela personagem. Um desempenho fantástico.

Curiosamente, o elemento surpresa da história e sem dúvida a figura mais interessante do filme é a terceira parte deste triângulo: Stella (Kim Hunter). Impossível de desvendar o que pensa, o que sente. Por que razão está ainda com Stanley, quando toda a gente no seu bairro conhece como ele é? Como é que ela aguenta com tanta parvoíce que a sua irmã profere? Hunter torna Stella uma mulher enigmática, emotiva, reactiva, a sua face iluminando-se nalguns momentos cruciais na película. Comporta-se ingenuamente a maior parte do tempo, todavia de repente exibe uma espécie de despreocupação, temeridade, non-chalance, uma capacidade de abstracção que me fascina na personagem.  No início é-nos óbvio que quando Stella, depois de espancada, abandona a sua casa, que ela voltará. Ela deseja Stanley ardentemente e por ele faz tudo. É chocante apercebermo-nos que ela não o teme; ela até o compreende. Tudo isto torna a cena final, em que Stella volta a abandonar o seu domicílio depois do internamento da irmã, desta vez "de uma vez por todas", segundo ela, tanto ou mais imperiosa - será mesmo de vez?


E agora a minha escolha para melhor imagem. A que representa, para mim, o melhor que este triângulo de relações nos oferece no filme. Blanche torturada por Stanley. Stanley, bruto, sem noção de como é. Stella agindo como mediadora, nunca escolhendo lados neste feudo. E Blanche procurando segurança numa irmã que não sabe em quem confiar mais.




Nota Final:
A

Informação Adicional:
Realização: Elia Kazan
Argumento: Tennessee Williams
Elenco: Vivien Leigh, Kim Hunter, Marlon Brando, Karl Malden
Ano: 1951