Dial P for Popcorn: BLUE VALENTINE (2010)

terça-feira, 29 de março de 2011

BLUE VALENTINE (2010)



 "Tell me how I should be. Just tell me. I'll do it."


Há quem diga que o maior desafio que podemos enfrentar nesta vida é amar uma pessoa. Depois de ver BLUE VALENTINE, eu diria que concordo em absoluto. Retratando um romance trágico digno dos maiores épicos de outras eras do cinema, o filme com que Derek Cianfrance se estreia como realizador não podia ser uma experiência mais pessoal e introspectiva, uma imagem cruel, arrasadora mas honesta e inflamada dos altos e baixos de uma relação. A relação falhada destes dois jovens serve de pano de fundo a algo muito maior que uma história, a algo pelo qual todos temos que eventualmente passar na vida: aprender a lidar com o amor de uma pessoa. E enquanto Dean e Cindy tentam remendar a sua união na tela, nós, meros espectadores, ficamos com o coração nas mãos - conseguirão eles recuperar a sua felicidade juntos?


O filme abre com Dean (Ryan Gosling), de aspecto descuidado, com um cigarro e uma cerveja na mão, a brincar com a filha Frankie (Faith Vladyka). De repente surge-nos a sua mulher, Cindy (Michelle Williams), atarefada, preocupada, irritadiça, bonita mas desarranjada. A relação de ambos, nota-se, encontra-se em estado de deterioração. As mágoas guardadas de há muitos anos atrás começam a deixar sinais visíveis de saturação e tudo parece ser motivo para discórdia e discussão. Os dois já não fazem bem um ao outro, são corrosivos, destrutivos, quando estão juntos. O realismo conferido à situação é impressionante, conseguindo Cianfrance fazer-nos perguntar como é possível que estes dois um dia se tenham apaixonado verdadeiramente um pelo outro.  Pois bem, o filme decide responder-nos e salta vários anos no passado, a uma altura em que Dean, um jovem zé-ninguém, bem-disposto e divertido, charmoso e bem-parecido, começava a sua vida despreocupadamente e se interessa por uma rapariga bonita, inteligente e cheia de vivacidade e alma chamada Cindy. A química entre os dois é explosiva (como se comprova pelas enternecedoras cenas de conquista) e complementam-se na perfeição: Dean, que nunca conheceu verdadeiros valores familiares, obtém de Cindy estabilidade e companhia. Cindy, cujos pais não se amavam realmente, fica encantada com a estabilidade emocional e o estado de espírito positivo e apaixonante de Dean. O filme alterna entre a realidade presente, em que vemos Dean e Cindy derrotados pelas circunstâncias da vida, e o momento no passado em que a sua relação se iniciou, em que os conhecemos mais livres, mais jovens e despreocupados, com a vida toda pela frente, como se procurasse perceber o que é que correu mal.


Ao contrário de muitos filmes que abordam este tema, é nos pequenos detalhes, neste mosaico de momentos que constroem a manta que é uma relação, que Derek Cianfrance e os outros dois argumentistas fazem o filme destacar-se. Seis anos volvidos desde o momento que se conheceram, é óbvio para o espectador que Cindy está física e mentalmente exausta e que só milagrosamente ainda suporta a companhia de Dean. E é igualmente claro que Dean é relativamente indiferente a tudo isto: desde que ele possa viver o dia-a-dia dele em paz e sossego, beber cerveja todo o dia e ser amado pela mulher e pela filha, para ele está tudo bem. Ele é basicamente um miúdo preso num corpo de gente grande e é por isso que Cindy fica tão irritada com ele. Isto é particularmente fácil de perceber na cena passada no motel barato onde Dean e Cindy decidem passar uma noite. Dean praticamente implora por sexo. Cindy afasta-o com uma gélida indiferença e rude falta de afecto que demonstra indubitavelmente o quanto ela não o quer e ele a repulsa.


Cindy sabe que Dean estará sempre ao lado dela e da sua filha, para a qual ele é um bom pai. Cindy sabe disso e agradece-lhe. Só que a vida trocou as voltas a Cindy e o seu controlo sobre ela fugiu-lhe. E Cindy foi acumulando a sua raiva e frustração até não poder mais. Cindy nunca quis casar-se. Cindy não queria ter tido uma filha tão cedo. O romance entre Cindy e Dean não era suposto ter progredido assim. Mas foi assim que as coisas se passaram. E é por isso que a falta de ambição, a despreocupação e o desperdício do potencial de Dean - e o facto de ter de ser ela a suportar a família - tanto incomodam Cindy. Para Dean, casar-se com Cindy foi o alcançar do seu máximo potencial. O casamento e a família era o grande plano de Dean e, estando isto atingido, ele desistiu de tentar, pura e simplesmente. A vida, para ele, podia ser vivida sem o mínimo entusiasmo e planeamento. A missão dele está cumprida. Daí ele não perceber a insatisfação e descontentamento de Cindy - afinal, ele ama-a - não é isso suficiente para que ela o ame de volta?


Que o equilíbrio delicado entre os dois protagonistas desta história funcione tão bem é prova do enorme talento dos seus dois intérpretes. Ryan Gosling é, sem margem para dúvida, o maior actor da sua geração. Imerso profundamente no personagem, conserva todos os elementos fundadores da sua personalidade ao longo das duas partes distintas da história, conferindo no entanto características diferentes aos dois estados de Dean. O primeiro Dean é um ser-humano completo. O Dean mais velho é uma sombra, um fragmento do seu "eu" passado, um homem de coração partido, destruído pela vida e pela dificuldade em manter uma relação que desde o início se revelou imensamente complicada de gerir e pela qual fez tudo. A sua dor é palpável e o seu sofrimento ao sentir a indiferença da mulher, mesmo ele dando tudo por ela, é de partir o coração. Ainda para mais porque as suas cenas com a filha, por contraste, mostram-no muito diferente, irradiando carinho e alegria. Já Michelle Williams ficou com o papel mais complicado dos dois. Ela é muito mais reactiva, um reflexo mais rígido e impávido que contrasta com a extroversão e paixão que caracterizam a sua cara-metade. Todavia, é naqueles momentos de raiva silenciosa em que parece querer libertar-se das suas frustrações e desatar aos gritos que Cindy se revela. Ela é pura e simplesmente uma mulher que não escolheu a vida que lhe coube - e que, pudesse ela voltar atrás, tudo faria para dela fugir. Está a suportar e a esconder sentimentos há tempo demais. É uma pessoa desesperada, sem esperança, sem rumo. E que não gosta de estar assim. Que este conflito de alma nos seja passado de forma imensamente convincente é um testemunho à grande qualidade desta surpreendente actriz.


Como disse no início, BLUE VALENTINE parece ser um relato extremamente detalhado e pessoal. Talvez seja. Talvez o segredo da realização brilhante de Derek Cianfrance esteja na experiência de ter passado por aquela situação. Seja como for, valeu a pena os doze anos que ele levou a conseguir produzir, realizar e lançar o filme. Esta experiência visceral, dolorosa, que nos analisa a alma e testa os nossos sentimentos, que nos faz chorar e rir ao sofrer com o destino destas personagens, merece o tempo de espera que teve. Cianfrance parece arrancar-nos as entranhas, sem piedade nem dó, lançando-nos num turbilhão de emoções. Acompanhando cada momento excepcional na vida a dois deste casal, Cianfrance deixa-nos ver com os nossos olhos como as coisas acontecem a longo termo. BLUE VALENTINE é a história de uma relação como tantas outras. Algumas acabam bem, algumas acabam mal. Pelo caminho, ficam alegrias, dramas, tristezas, discussões, tudo pontos de paragem no caminho que é a vida. Quando começamos um romance, nunca sabemos o que verdadeiramente nos espera - e em BLUE VALENTINE, vemos Cindy e Dean agarrarem-se o máximo que conseguiram ao deles - e o quanto custou a Cindy deixá-lo ir.

Um dia conheces o amor da tua vida e vives feliz para sempre. Era bom que fosse assim tão fácil.




Nota Final:
A-

Informação Adicional:
Realização: Derek Cianfrance
Argumento: Derek Cianfrance, Joey Curtis, Cami Delavigne
Elenco: Ryan Gosling, Michelle Williams, John Doman, Mike Vogel, Faith Vladyka, Ben Shenkman
Fotografia: Andrij Parekh
Ano: 2010

Trailer:

6 comentários:

João Fonseca Neves disse...

Jorge, excelente crónica! Concordo em absoluto contigo, especial com a opinião do teu parágrafo final. Ao vermos blue valentine ficamos claramente com a ideia de que o filme certamente surgirá como um reflexo da experiência pessoal do realizador ou, se assim não for, será o reflexo de muitos anos de pesquisa, análise e reflexão sobre o amor e a vida a dois.

Gostei mt de ler! ;) Abraço!

Joana Vaz disse...

A crítica está óptima!.:D

Blue Valentine é realmente muito triste e talvez o que nos choque mais seja essa realidade crua que nos transmite...

Já discutimos muito sobre estas duas personagens, agora percebo melhor a tua incessante defesa por Cindy!:)

Cindy não teve a vida que sempre sonhou, todos os seus planos foram por água abaixo, e é penoso ver como se foi transformando numa pessoa amarga e desiludida.

No entanto continuo a achar que Dean, o adulto miúdo, é quem mais sofre com a inevitável morte da relação.
Ele faz de tudo para a conservar e a frase inicial da tua crítica, "Tell me how I should be. Just tell me. I'll do it.", mostra exactamente esse seu desespero.
Não consigo deixar de ter mais pena dele. Afinal ela e a "filha" eram as grandes vitórias da vida dele. E perdeu tudo.

As interpretações de Michelle e Gosling são notáveis.
Penso que Gosling foi roubado de uma merecida nomeação para Óscar. E talvez a minha posição do lado dele na história se deva precisamente à sua brilhante prestação.

Um grande filme e uma grande crítica que lhe faz toda a justiça!;)

Filipe disse...

Este texto está tão brilhante quanto o filme...

Não tenho muito a acrescentar em relação porque quase tudo o que acho sobre o filme já foi dito na crítica...

Concordo totalmente com a observação que o papel da Michelle Wiliams é mais difícil e ingrato e é de destacar o realismo permanente e a universalidade (quantos de nós não conhecem mulheres numa situação semelhante???) que esta deu à sua Cindy. A personagem de Dean é bem mais teatrizável, muito mais fácil de expressar o seu estado de espírito no que toca à relação.

O que Dean mostra é feito maioritariamente por acções (p.e. o amor desesperado por Cindy - no motel - e a filha - nas brincadeiras), enquanto que Cindy fá-lo num enorme jogo de silêncios e contenções (a discussão no carro e a sua reacção no motel são exemplos disso).

Gosling e Williams estão ambos espantosos e nem que fiquemos do lado de Dean ou Cindy nunca o ficamos a 100% devido ao talento dos dois actores na criação das suas personagens...

Cindy provavelmente nunca o amou mas foi embebidada em todo o romantismo de Dean e, numa situação de desespero, apoiou-se no único "encosto" disponível... A culpa é dela por se ter deixado iludir/ter sido iludida na altura?? Ou é dele por ter sido demasiado "aquilo que ela precisava" na altura?? O filme mostra que a culpa é de ambos e não é de nenhum; a culpa é da vida.

Bem, e para quem disse que não ia acrescentar muita coisa até já escrevi bastante. Mas é a prova de que este filme dava para pano pras mangas. :P

Parabéns pelo excelente texto! :)

DiogoF. disse...

Vou tentar outra vez, e, peço desculpa, mas terei de resumir.

Jorge, há muito tempo que não comentava algo teu e parece que acertei em cheio. Sim, fazes jus ao filme, e muito bem. Noto que sentiste toda a sinceridade e humildade que transmite, que também senti, todo o rigor e frieza emocionais, que talvez só possam surgir da cabeça de quem esteve tão perto disto (Cianfrance começou o argumento à 10 anos, como terapia para o divórcio dos pais).

De pormenores deliciosos, com planos magníficos, uma emocionante estrutura de argumento (o flashback não é mera e legítima muleta de informação - e não haveria problema se o fosse - mas tem toda uma dinâmica de passadeira paralela, evolutiva, mas sempre contraditória, quase puxa para o lado precisamente oposto, quase invertendo ou tentando subverter o eixo temporal que, não só se segue, como já foi seguido pelas cenas do presente a que vamos assistindo - e isso é que torna o filme particularmente "doloroso").

A realização e a fotografias balançam com incrível eficiência entre o gélido e impessoal do presente e o íntimo e enternecedor das belíssimas jornadas de namoro do passado.

Golsyn está magnífico e foi um dos mais roubados dos Óscares. Aliás, este filme foi uma das maiores injustiças do ano.

Nuno Barroso disse...

Achei este filme um tanto desapontante.

Não consigo tomar nenhum partido, pois achei que as duas personagens tiveram o seu contributo para a deterioração da relação delas, e em consequência disso, não consigo estabelecer qualquer ligação com elas [o que seria vital para este tipo de filmes].

Os dois actores estão, contudo, muito fortes e são a única razão pela qual consegui ver o filme até ao fim. A Michelle Williams é sempre de confiança, e o Ryan Gosling vem apenas consolidar a sua posição como o melhor actor da sua geração.

Jorge Rodrigues disse...

JOÃO:

Pois, ainda bem que não foi só a mim que deu a ideia que este projecto lhe é imensamente pessoal - supostamente ele disse em entrevista que se baseou no que sentia aquando do divórcio dos pais, como o Diogo também afirmou. Acho curioso é que Dean na fase final da relação é fisicamente muito parecido com o próprio Derek Cianfrance.


JOANA:

Obrigado pelo elogio :)

Ainda bem que passei bem o que sentia em relação à Cindy, que acho que injustiças um pouco com tanta crítica e tanto endeusamento do Dean (que já discutimos entretanto; we'll agree to disagree).

Eu admito que ele tenha sido o que sacrificou mais pela relação, mas também foi sempre aquele que a queria. Ela nunca quis casar-se; foi a oportunidade que surgiu e que ela aceitou - o que se tem de perceber é o que está por detrás da aceitação do pedido (que é aí que eu acho que Williams e Cianfrance entenderam o essencial; com uma família como a dela, muito conservadora, e um parceiro como Dean, um raio de sol no meio de tanta coisa má que lhe acontecera, como poderia ela recusar?)


FILIPE:

Obrigado pelos elogios. É, também compreendeste como eu que a Cindy era a que requeria mais esforço interpretativo e expressividade reaccional por parte do actor, enquanto o Dean poderia deixar libertar as suas emoções à vontade. São dois papéis diferentes e duas grandes interpretações de qualquer forma. O Gosling é o meu actor favorito do ano (ups, acabei de revelar um dos meus prémios dos DAFA :P) enquanto que ela não é, mas sinceramente eu acho que em termos de qualidade da performance eles estão do mesmo nível.

E tens razão: por culpa das circunstâncias da vida, acabaram os dois juntos. Não era suposto terem ambos que lutar tanto pela sua felicidade. Mas a vida nem sempre é justa. E deve ter custado imenso a Cindy no final deixar Dean ir.


DIOGO:

Gosto tanto que venhas cá falar dos aspectos técnicos, coisa que tenho tendência a negligenciar nalgumas das minhas críticas. Eu concordo em absoluto com o que dizes dos planos, da fotografia e da forma subtil como Cianfrance organiza o argumento e desenvolve a história através de flashbacks - faz-me lembrar 'Cabaret' na forma como interpõe a acção com números musicais relacionados com a fracção de história que vamos testemunhar a seguir - e sim também admito que adorei perceber o rigor e frieza emocionais que referes, precisamente porque acho que o texto e a história lhe são tão queridos.


NUNO:

Lamento que não tenhas conseguido conectar-te com as personagens da história, coisa que também considero essencial para uma apreciação mais funda da substância da trama. Ainda assim, folgo de ver que também apreciaste imenso o contributo destes dois grandes actores que são, respectivamente, dos melhores que a sua geração tem para dar.


Obrigado pelos comentários pessoal,

Jorge