Dial P for Popcorn: Ninho de Cucos (VIII)

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Ninho de Cucos (VIII)

Queira desculpar o fiel ou esporádico leitor a interrupção da cronicidade desta crónica, motivada em essência pelos penosos deveres académicos, dos quais felizmente me vejo agora livre. Encontro-me agora na feliz situação de poder aborrecer os meus dias a procrastinar e a recuperar o andamento com que o eixo do nosso planeta gira sobre si próprio. Não me surpreende, contudo, encontrar uma actualidade não muito distinta da que me lembrava, assombrada por expectativas cada vez mais cépticas num futuro menos castigador, histórias de corrupções, fraudes e aldrabices, que apesar de não incaracterísticas de outras épocas, se replicam abusivamente nesta.


Uma dessas histórias que não deve ter passado ao lado de muita gente foi a confissão de dopagem de Lance Armstrong, numa entrevista exclusiva com Oprah Winfrey. Ao fim de vários anos de fervorosa negação e de perseguição aos seus acusadores, o ex-ciclista saiu do armário, não tendo tido coragem porém para responder a nada que lhe pudesse trazer implicações judiciais ou para mostrar algum resquício de genuíno arrependimento. A entrevista em si não foi nada de extraordinário, mas ficou-me na retina uma das suas evasivas respostas em que o norte-americano refere ter ido ao dicionário pesquisar a definição da palavra "cheat". Achei curioso ver alguém com uma das carreiras mais bem sucedidas no desporto, puramente baseada na batota e no embuste, ter tido a necessidade de se socorrer do dicionário para alcançar o significado de tal vocábulo.

Mas aproveitemos a situação e façamos nós próprios a mesma reflexão. O dicionário de Lance definia "cheat" como "obter proveito através de algo que não esteja ao dispor dos outros". Sendo assim "cheat" (que vou traduzir como "corrupção" para efeitos de dramatismo) abrangeria um leque de circunstâncias muito maior do que se poderia pensar. Será o aluno que leva cábulas para o exame tão culpável como o ministro que se matricula com os exames já todos 'feitos'? Será o miúdo que faz batota no Monopólio tão desprezível como o professor que dá as notas sem permitir a revisão do exame? Ou será o médico que dá uma consulta extra ao cunhado do tio tão condenável como o dirigente da FIFA que faz leilões de Mundiais disfarçados de concursos imparciais? Sendo eu portista, e consequentemente, um perito em discussões sobre corrupção, acredito que a culpa desta ambiguidade não é dos dicionários, mas antes do nosso senso comum latino. Talvez quando nos assemelharmos mais com os povos nórdicos, com quem tanto nos gostamos de comparar, possamos ter uma melhor noção do que significa viver em comunidade e do verdadeiro significado de corrupção.


Contudo não me sai da cabeça que este tipo de situações, que privilegiam o bem-estar pessoal ao bem-estar geral numa proporção socialmente inaceitável, não deixam de ser um espelho do mundo em que vivemos. Correndo o risco de ser confundido com a opinião populista de que a sociedade tem culpa de tudo, julgo provável que esta era da informação e globalização contribua com a sua quota-parte para o problema. O universo cibernáutico veio proporcionar uma possibilidade infinita de igualdade, mas o preço pago por essa benesse pode ser medido, por exemplo, nas versões online de vários jornais, onde frequentemente se podem ler comentários brutalmente desadequados a notícias perfeitamente banais como "de certeza que é cigano" ou "havia de ser comigo, engolias esses dentes todos seu p****" e onde a correcção ortográfica é tão prevalecente como o Rinoceronte Negro no Pinhal de Leiria. Por outras palavras esta democratização do acesso à informação e do acesso ao comentário leva a que haja uma popularização da crítica. Hoje em dia saber estar calado deixou de ser uma virtude, porque o anonimato se tornou sinal de insucesso, e é por causa disso que temos canais de TV infestados com Casas dos Segredos e outras parvoíces. Tudo bem que esse parolos que aparecem na TVI não fazem mal a ninguém, mas não nos podemos esquecer que a idiotice é uma pré-requisito para a corrupção. Sim porque por muita fachada que um fato e uma gravata possam oferecer, não há pior idiota que o aristocrata que negligencia os direitos da comunidade!


Mas o que tem o cinema a ver com tudo isto? Já lá vamos. No outro dia quando estava a ler uns artigos sobre o nosso amigo ciclista tropecei numa notícia, já com alguns meses, que anunciava um filme baseado numa autobiografia do campeão americano, já com a Sony Pictures e o Jake Gyllenhaal envolvidos no projecto. É óbvio que, com o escândalo da batotice do homem, os responsáveis pela produção tiveram que deitar todo o planeamento já feito pela janela fora, ou pelo menos foi assim que pensei. Porém, não podia estar mais errado! Ao acabar de ler a notícia fiquei a saber que JJ Abrams (o produtor de Lost) garantiu já os direitos do livro de uma repórter do New York Times, acerca das falcatruas com que Armstrong fez a sua carreira, livro esse que ainda nem sequer foi lançado. Hollywood não se deixa deter por situações destas! Em vez disso atropela-as e saca-lhes mais dinheiro!

Mas veja-se o lado positivo da coisa: num mundo com tanta preguiça de se intelectualizar, em que se prefere sempre um filme de 2-3 horas a um livro de quinhentas páginas, por que não aproveitar esta extraordinária máquina de fazer filmes e distribuir cultura às massas? O problema da formação massiva de idiotas de que falamos anteriormente seria possivelmente colmatado se o cinema fosse integrado nos programas pedagógicos do nosso país. Imagine-se a dificuldade que há em fazer com que alunos adiram à leitura de obras icónicas da literatura e a contrastante adesão quando se substitui esse processo pelo visionamento de um filme. Agora adicione-se a esse aspecto a capacidade catártica que só a arte tem em conseguir mudar as pessoas. Quem nunca se perguntou a si mesmo se teria a mesma capacidade de altruísmo e benevolência que Liam Neeson protagoniza em "A lista de Schindler", onde perpetua a história verídica de um homem mundano, igual a todos nós, que muda à medida que testemunha os horrores do holocausto e se torna num verdadeiro filantropo? Ou quem nunca se sentiu fascinado com a deliciosa história de Salvatore Di Vita e Alfredo no "Cinema Paraíso", onde o fascínio pelo cinema se confunde com as comoventes paixões e nostalgias de um jovem Siciliano criado entre projectores e películas?


Não quero com isto dizer que o livro deva ser negligenciado face ao filme. Quem sabe desfrutar de um livro sabe que são raras as ocasiões em que a sétima arte faz jus à obra escrita. Mas em verdade vos digo que como aluno não havia dias mais felizes do que aqueles em que a funcionária da escola aparecia na sala de aula com o monitor e o leitor VHS/DVD. A nível pedagógico o cinema está para a obra literária como a Aspirina está para o chá de Camomila, e as suas potencialidades exigem ser exploradas, especialmente numa altura em que 'sacar' um filme é tão cómodo como tirar um café. É natural que esta utilização do cinema como instrumento de educação cultural e de intervenção social não fará jamais com que todos os campinos portugueses saibam dizer quem pintou a Capela Sistina (até porque a iliteracia é como aquelas comichões que por mais que se esfregue só aumenta a coceira), mas estou confiante que algum dia havia de estabilizar esta crescente praga de cretinos, corruptos e idiotas, que não deixam de parasitar a praça pública. Quem sabe um dia se possa mesmo fazer com que as decisões do nosso país passem por pessoas com o mínimo de formação intelectual e humana que todo o legislador deve possuir. 

Mas isso fica para quando houver Ministro tolo o suficiente para acreditar nestes devaneios.

Gustavo Santos

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