"He picked me, Mommy!"
Depois de em The Wrestler o realizador Darren Aronofsky nos ter mostrado o dano físico e psicossocial que a devoção à arte podem causar a uma pessoa, eis que ele volta a terreno conhecido em Black Swan, arrancando uma interpretação memorável de Natalie Portman, daquelas feita para ganhar montanhas de prémios, na qual se vê todo o esforço que a actriz teve que exercer para conseguir interpretar convincentemente uma bailarina de uma companhia de dança com alta reputação e, em simultâneo, actuar ao longo do filme, mostrando como tanto o desequilíbrio emocional como a obsessão inocente de Nina (em conjunto com outros factores), a nossa protagonista, contribuíram para agravar o complicado estado mental da personagem.
Um visionário inexcedível, Darren Aronofsky sucede em fugir a um argumento com uma história bastante óbvia, transformando o que poderia resumir-se à perda de lucidez de uma bailarina num estudo complexo e intenso sobre a fragilidade da psique de um bailarino, o artista que desempenha o papel principal naquela que é considerada, por muitos, a "arte maior" da dança, a que mais dada é a grandiosas e elaboradas coreografias, a que explora a musicalidade própria das composições clássicas e a usa para grande efeito. Nina Sayers é uma metáfora interessante para o que é ser uma bailarina: uma psique frágil, vulnerável, destruída pelas inúmeras rejeições, pelo esforço mental que requer, pela concentração e atenção ao detalhe e ao pormenor de uma performance imaculada, sem falhas, escondida por detrás de um corpo altamente muscular, que sofre dano ao mesmo tempo que a mente, dano este que pelo contrário é bastante visível. O perfeccionismo paga-se caro.
O filme reside em linhas narrativas muito simples: Nina Sayers (Natalie Portman) é uma das bailarinas mais antigas de uma renomada companhia de ballet norte-americana que vê a sua grande oportunidade chegar quando Thomas (Vincent Cassel), o excêntrico mas enormemente talentoso director da companhia, decide reformar a sua antiga prima ballerina, Beth (Wynona Ryder), e preparar o seu glorioso retorno à proeminência com o seu moderno remake do bailado mais famoso de Tchaikovsky, o Lago dos Cisnes. Nina, atormentada já por si só pelas expectativas ridiculamente elevadas que a sua mãe, Erica (Barbara Hershey), que outrora também fora bailarina, coloca nela, vê o seu estado mental deteriorar-se enquanto se perde numa competição, que até ao fim não sabemos bem se se passa verdadeiramente ou se é só apenas fruto da sua mente, com Lily (Mila Kunis), a nova bailarina da companhia.
Lily é tudo aquilo que Nina sonhava ser e não é; Nina é operática, perfeccionista e trabalhadora, com movimentos delicados e suaves, perfeitos para desempenhar o papel do Cisne Branco, que requer uma inocência e vulnerabilidade que Nina exuma naturalmente. Já o Cisne Negro, que se quer sensual, livre de movimento e mais descontraído, torna-se um desafio titânico para Nina superar. Na sua busca pela perfeição e ideal no que é, invariavelmente, o papel que definirá para sempre a sua carreira como bailarina, Nina perde-se na fina linha entre a realidade e o imaginário, conduzindo-nos com ela pelo mundo competitivo do ballet e pelas exigências físicas e psicológicas que este papel lhe vão impôr.
O elenco funciona de forma maravilhosa, com Wynona Ryder em pleno modo neurótico a proporcionar-nos pequenos momentos de prazer, ao vê-la assumidamente representar aquilo que é, hoje em dia, um espelho da sua vida enquanto actriz e Barbara Hershey a elevar o nível de cada cena que protagoniza. Vincent Cassel e Mila Kunis não têm muito mais que explorar fora das linhas de principais propulsores do desabrochar social e sexual de Nina. Sedutores e enigmáticos, contudo pouco mais que isso.
Weisblum e Libatique continuam a colaboração frutífera com Aronofsky, que tão bons resultados vem dando e que atinge um novo máximo em Black Swan, com ambos a realizar um excelente trabalho dando asas à criatividade do mestre e trabalhando em seu prol, com uma fotografia impecável e um trabalho de edição notável a serem os grandes destaques, em termos técnicos, desta película (uma nota de parabéns também à produção artística - o jogo de espelhos, as salas a meia-luz, a casa de Erica e Nina - cheia de pormenores deliciosos, com ar de cela mas também convidativo à intimidade e à relação estranhíssima que as duas possuem). Clint Mansell, o compositor de serviço de Aronofsky, também brilha aqui, com uma adaptação irreverente e irresistível da obra-prima de Tchaikovsky, explorando os mais finos detalhes e transformando-a quase num pesadelo que nos persegue muito depois de abandonarmos o cinema, convertendo o Lago dos Cisnes numa experiência selvagem, pesada, emocionante. E, no fim de contas, há que dar o braço a torcer a Aronofsky. Ninguém consegue revirar tanto o jogo como ele. Mantendo-nos sempre na beira do assento, excita-nos e maravilha-nos a cada minuto que passa, subindo-nos o nível de adrenalina até culminar naquele orgásmico final.
Neste pas de deux entre a dança e a vida, entre a realidade e o sonho, entre a técnica e o talento, Nina (a pessoa) procura libertar-se do enjaulamento e repressão social que a sua mãe lhe impõe, enquanto Nina (a artista) procura libertar-se da perfeição técnica que tantos anos de rigoroso treino lhe impuseram para alcançar o próximo nível: a perfeição artística, capaz de nos ludibriar e encantar ao mesmo tempo. Conseguirá Nina lá chegar? E que preço terá de pagar? É o que Aronofsky nos tenta contar.
Nota Final:
A-/B+
Informação Adicional:
Realizador: Darren Aronofsky
Argumento: Mark Heyman, Andrew Heinz, John McLaughlin
Elenco: Natalie Portman, Mila Kunis, Barbara Hershey, Wynona Ryder, Vincent Cassel
Fotografia: Matthew Libatique
Banda Sonora: Clint Mansell
Ano: 2010
Trailer:
8 comentários:
Estava muito ansiosa de ver "Black Swan". E na noite em que o vi tudo me pareceu grandioso.
Adorei cada minuto de expectativa. Da realidade e imaginação surgirem tão aliadas que se torna complicado distinguir uma da outra.
E a verdade é que nessa noite o filme perdurou na minha mente.
No entanto, dias passados já não o acho tão magnífico, é um grande filme, isso ninguém pode negar, mas não o considero o melhor do ano.
Quanto ao elenco, Natalie Portman tem o papel de uma vida. É perfeita. E tem merecido todos os prémios que tem ganho.
Clint Manswell conseguiu preservar a graciosidade da obra de Tchaikovsky, mas tornou-a sombria e pesada. Um trabalho soberbo.
Quanto à tua crítica, fui gostando mais e mais à medida que ia lendo... e o último parágrafo é fabuloso.
Teres utilizado uma expressão gíria do Ballet é notável e tão apropriado!;)
Um grande filme, sem dúvida alguma. E um valente pedaço de escrita, também ;) Aronofsky sabe como ninguém proporcionar ao espectador uma experiência daquelas, para além de todas as qualidades técnicas e artísticas que as suas obras abarcam.
Roberto Simões
CINEROAD
Pensava que vinha ler um texto a trucidar o filme, ahah. Mas assim não foi e, se fosse, certamente que terias apresentado válidos e coerentes argumentos, como fazes sempre. Assim não tendo sido, fiquei contente e digo-te que gostei muito de a ler. Gostei da dica de a casa dela parecer, por um lado, uma cela; por outro, uma casa aconchegante - interessante.
Abraço.
JOANA:
Pois, eu sei bem o quanto te tens vindo a desencantar com o filme. Eu sugiro nova visualização. Se calhar esclarecia-te a tua real opinião. Eu não sou o maior fã da interpretação da Natalie Portman, embora reconheça que faz todo o sentido que ela vença o Óscar.
Obrigado pelos elogios à crítica. Era também o objectivo a intimidade crescer no decurso da crítica. E o "pas de deux"... admito que me veio à cabeça, nem sei bem porquê. Mas acho que não é a primeira vez que uso essa expressão numa crítica.
ROBERTO:
Muito obrigado pelos elogios. E pois, já me conheces, eu tenho tendência a esticar-me nas críticas quando tenho muito a dizer de um filme.
Vá que consegui fugir aos 'spoilers' desta vez por isso "yay!" para mim.
E tens toda a razão, Aronofsky é mestre em proporcionar-nos experiências brutais e, mais importante que isso, merecedoras de conversação no pós-filme.
DIOGO:
Eu disse que tinha tentado fugir aos negativismos que revestem a minha real opinião do filme. Eu admito que tenho perdido entusiasmo ao falar de BLACK SWAN, mas achei que tinha que ser justo ao criticar o filme porque eu gostei muito dele quando o vi pela primeira vez e isso é o que importa. Claro que tem falhas, algumas muito óbvias, mas não deixa de ser um grande filme.
Essa da casa ser cela/covil, admito, tinha-me dado a impressão já da primeira vez mas só me fez mais sentido quando vi pela segunda vez. Aquela casa é, por si só, assustadora. Excelente produção artística.
Obrigado pelos generosos comentários,
Jorge Rodrigues
Eu fui ver o filme esta semana e gostei mesmo!:) a Natalie Portman fez um trabalho fenomenal!
MARIANA:
Ainda bem que gostaste :) É uma grande interpretação, sim.
Obrigado pelo comentário,
Jorge Rodrigues
Excelente Crónica Jorge! Parabéns! Como já te disse, fico muito aliviado por não ter que falar sobre este filme :P É um filme complicado de digerir e analisar, acho eu.
Achei-o extremamente bem elaborado, extremamente bem pensado e excepcionalmente trabalhado. É um filme consistente, do inicio ao fim. Praticamente sem falhas. No entanto, acho que lhe falta a paixão dos grandes filmes. É sem dúvida um ótimo filme, um dos melhores do ano, mas não é o melhor.
Não tem a paixão que um Iñarritu, um Paul Thomas Andersson ou até mesmo um Danny Boyle colocam no filme. A excessiva vontade de Aronofsky atingir a perfeição, acabou por o afastar dela.
Concordo com a tua nota companheiro! ;)
Jorge, venho apenas agradecer-te imenso toda a consideração e companheirismo por todos os comentários que fizeste o favor de me deixar hoje, um autêntico record, verdadeira quantidade industrial, eheheh.
Agora a sério, muito obrigado pelo feedback ;) Abraço.
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