"Watch and you'll see... One day I'll be... Part of your world."
Em busca de renascer de um período negro de parca qualidade a nível dos seus estúdios de animação, a Disney decidiu, em 1989, fazer regressar um dos tipos de histórias mais queridos do seu público-alvo: os contos de fadas. E para isso apostou numa história que já havia passado pelas mãos de Walt Disney e por vários argumentistas dos estúdios mas que havia sido arquivada e descartada. Era uma história baseado num conto algo sombrio de Hans Christian Andersen sobre uma sereia que sacrificava os seus dons mais preciosos para poder viver uma vida normal como humana ao pé do homem que amava. Essa história era, como hoje sabemos, "The Little Mermaid" e seria ela que iria trazer uma nova alma e glória aos velhos estúdios Disney e provocar uma revolução que culminaria no seu período mais inspirado de sempre.
Até em termos do processo de desenvolvimento e produção do filme se nota uma diferente inspiração e positivismo no ar. Howard Ashman e Alan Menken juntaram-se de bom grado ao projecto para produzir uma das melhores bandas sonoras que um filme de animação alguma vez viu; Glen Keane, um dos maiores animadores dos estúdios, que normalmente se dedicava a desenhar e animar figuras mais masculinas e normalmente vilãs pediu veementemente que o deixassem animar a protagonista Ariel. E muitos outros exemplos - se estiverem interessados - podem ser vistos no documentário "Waking Sleeping Beauty", que conta a história da nova era da animação Disney.
"THE LITTLE MERMAID" é, mais que um retorno ao grandes velhos clássicos de animação de outros tempo, uma divertida (diria festiva até) e curiosa aventura repleta de sonhos, de criatividade, de imaginação que nos deixa encantados e hipnotizados. O filme narra a história de Ariel, uma sereia diferente do habitual, cujo sonho era virar humana para poder encontrar-se com o homem que amava, o príncipe Eric, que ela uma vez salvara de morte certa e por quem ele se apaixonou ao ouvir cantar. Claro que tal conto de fadas era impossibilitado pela diferença de espécies de ambos. É aqui que a história do filme diverge do conto de Christian Andersen, criando um fio narrativo secundário no qual nos apresenta a malvada vilã Úrsula, permitindo a Ariel trocar o seu maior dom pela possibilidade de viver uma vida normal como humana. O que Ariel não sabe é que Úrsula deseja o trono do seu pai, Tritão, rei dos sete mares e pretende assim usá-la como moeda de troca.
O que tantas vezes falhou nos filmes dos estúdios que precederam este "The Little Mermaid" é, neste caso, o seu ponto forte: a caracterização das personagens, em especial de Ariel e Úrsula. Ariel é, acima de tudo, uma protagonista realista e credível. Não é uma heroína passiva, que desespera sem nada fazer em busca do seu príncipe encantado e que é impedida, de alguma forma, pelo vilão, de atingir o seu objectivo. Não. Ariel é rebelde, tem defeitos, nem sempre toma as melhores decisões e não aceita injustiças. Ela pensa e age independentemente, o que nos leva desde logo a simpatizar com a sua história e com a sua angústia. Para isso ajuda muito que Ashman e Menken tenham ressuscitado um dos velhos costumes dos grandes clássicos de outrora: a canção central que estabelece o objectivo da protagonista e em que ela nos abre as portas do seu coração. E ajuda sobretudo que essa canção seja "Part of Your World", uma lindíssima balada que nos despedaça o coração pela cintilante e alegre voz de Jodi Benson.
O outro grande ponto forte é, sem dúvida, o detalhe e o cuidado que os animadores e os argumentistas tiveram em conferir bagagem ao vilão. Úrsula é, também ela, uma personagem realista e completamente formada, com uma história e um fio narrativo bem estabelecidos e, com uma grande actriz e voz por detrás como Pat Carroll, uma brilhante comediante e diva dramática. Cada fala que sai da sua boca é dita com tanta faísca, tão carregada de segundas intenções, que nos faz sorrir mesmo não querendo. E, claro, mais uma vez Ashman e Menken realizam um fabuloso trabalho criando aquela que é, para mim, a melhor canção que a um vilão alguma vez foi permitido cantar num filme da Disney: "Poor Unfortunate Souls". A canção é rica em piadas, em mensagens nas entrelinhas, em poder, força e vigor. Três minutos depois e Úrsula é, perante nós, igual a uma qualquer pessoa que todos nós conhecemos (ou vamos conhecer) ao longo da nossa vida: uma diva diabólica, invejosa, vaidosa, manipuladora, descarada e ambiciosa.
Apesar destes indiscutíveis méritos, o argumento nunca deixa esmorecer o calibre do filme. Inteligente e cheio de reviravoltas mais ou menos inesperadas, tem ainda o mérito extra de nos apresentar mais personagens secundárias que nos envolvem ainda mais no filme, como o stressado e disciplinador caranguejo Sebastião e o alegre e engraçado Linguado (Flounder na versão original) e a distraída e precipitada gaivota Sabidão (Scuttle) que providenciam vários momentos de descontracção e de riso, bastante necessários para dosear os momentos mais sérios da segunda metade da película. A animação, essa, é energética, refrescante, colorida e inovadora, que explora na perfeição os belíssimos cenários marítimos e cria um majestoso e impressionante castelo para o príncipe Eric, conferindo um pano de fundo riquíssimo em termos visuais para a história se desenvolver. Finalmente, voltar a falar (porque nunca é demais) de Howard Ashman e Alan Menken. Prodigiosos talentos da música, Ashman e Menken foram uma verdadeira lufada de ar fresco na animação contemporânea (como se veio a comprovar mais tarde), contribuindo, além da música, com várias ideias e mudanças a nível da animação do filme. "Part of Your World" e "Poor Unfortunate Souls" seriam razão suficiente para aplaudir uma fantástica banda sonora, mas quando esta ainda contém músicas tão inesquecíveis como a contagiante e reggae-esca "Under The Sea", cantada sublimemente por Samuel Wright e as maravilhosas músicas de abertura e encerramento do filme, é um acontecimento mesmo raro.
Muitas vezes se usa descuidadamente as palavras "inspiração" e "êxito" para definir muita coisa na vida. No entanto, no caso de "The Little Mermaid", somos obrigados a admitir: é o clássico da Disney mais orgânico e apaixonado, mais contagiante e envolvente, mais inspirado e revolucionário. Não é por nada que num ano bastante competitivo chegou a ser considerado como um dos grandes candidatos ao Óscar de Melhor Filme (criando o buzz que levaria a que isso acontecesse para o próximo filme da dinastia Disney, "Beauty and the Beast"). E não é por nada que, ainda hoje, muitas crianças se deixem levar e encantar pelas aventuras de uma marota sereia que só queria, na verdade, ser parte do nosso mundo, ser igual a qualquer um de nós.
Nota:
A-
Ficha Técnica:
Realização: Ron Clements, John Musker
Ano: 1989
Elenco: Jodi Benson, Kenneth Mars, Pat Carroll, Samuel Wright, Rene Auberjonois, Buddy Hackett
Música: Alan Menken, Howard Ashman
4 comentários:
Estou a adorar estes posts que fazem sobre os filmes da Disney*.* a Pequena Sereia é aquele filme especial, e com a princesa mais rebelde de todas. Eu identifico-me um bocadinho com a independência da Ariel, e com o facto de ela se isolar um pouco do seu mundo e desejar algo mais:) a banda sonora é fenomenal e a música "Part of your world" sei-a de cor:)
Sem dúvida nenhuma o meu filme preferido da Disney. Sempre o foi, sempre o será. Como disseste, é impossível não nos identificarmos com a Ariel, a sua vontade de ir mais além, de lutar ferozmente por aquilo que quer.
Sei a banda sonora de cor e salteado, é de facto sublime. A tua descrição da mesma é irrepreensível, passaste para palavras tudo o que de facto sentimos ao ouvi-la. Queria apenas relembrar o especial requinte de malvadeza da Ursula - a cereja no cimo do bolo, se assim quisermos chamar - quando canta em frente ao espelho como "Vanessa". São poucos segundos, mas para mim são absolutamente imperdíveis e ajudam a definir ainda mais a personagem, se tal é possível.
Parabéns pelo blog e por este especial animação :)
MARIANA:
Sim, é um dos filmes que mais me impressiona também por isso, é muito especial e peculiar e a protagonista é simplesmente uma excelente criação.
As músicas... Fazem parte de nós já.
OLIVE:
Ainda bem que partilhamos a mesma opinião! E sim a Ursula é mesmo uma grande vilã.
Obrigado pelos comentários,
Jorge Rodrigues
Grande retorno da Disney! Grandes canções!
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