Dial P for Popcorn: BLACK NARCISSUS (1947)

domingo, 22 de agosto de 2010

BLACK NARCISSUS (1947)

O grande cinéfilo Nathaniel Rogers, que mantém na Internet o blogue "Film Experience", tem vindo a desafiar os seus leitores (nos quais me conto obviamente - e se forem inteligentes, vocês também o serão) com uma nova rubrica chamada "Hit Me With Your Best Shot", que vai na sua terceira publicação (as duas primeiras eu falhei, "Angels in America" - tele-filme em duas partes da HBO que é dos meus filmes favoritos de todos os tempos - e bem gostava eu de ter visto a peça na Broadway ao vivo! - que eu vou redimir publicando para a semana uma crítica completa sobre os seis capítulos da obra-prima - e "Showgirls", filme que nunca vi, daí que não o possa discutir). A ideia base é simples: ele escolhe um filme e todos os que quiserem participar escolhem a imagem (ou imagens) do tal filme e ele faz um link a todos os posts dos participantes, a cada semana.

Esta semana calhou portanto falarmos de "BLACK NARCISSUS" (1947) (o post dele no seu blogue aqui) e eu sabia que não podia faltar de novo, até porque é dos melhores filmes daquela década e de qualquer década e no qual Deborah Kerr é magnífica.


Antes de mais, aconselho-vos a ver o filme primeiro, antes de discutirem comigo, pois é uma experiência incrível. De verdade. Pode não parecer uma grande história, mas acreditem que é. E se a minha recomendação não vos convencer, digo-vos agora: tem 100% no Rotten Tomatoes e tem 8.0 no IMDb. E deixo-vos ainda com o trailer abaixo:


Então vamos à parte que realmente interessa. Para a rubrica do "Film Experience" então eu não consegui só seleccionar uma imagem. Escolhi oito. A minha ideia inicial era de escolher sete, o número perfeito, porque "perfeito" é uma característica que cai bem ao filme, pois este possui talvez das fotografias mais perfeitas e das direcções artísticas mais cuidadas que eu já vi num filme pré-anos 90 (e claro que é fácil apontar uns vinte exemplos deste novo século que, diríamos, são superiores, mas o facto é que nos anos 40 apresentar tal poderio visual e tal habilidade de recriar toda uma atmosfera e background, só através de técnicos bastante capazes - e tão assim é que o filme teve duas nomeações para Óscar, precisamente nestas duas categorias, vencendo ambas).


Falemos do filme e das imagens. A premissa é simples: somos convidados a acompanhar um grupo de freiras que parte para os Himalaias, onde são ordenadas a erigir uma comunidade religiosa e a construir um convento, o Convento da Santa Fé. O que torna o filme interessante é mesmo a simplicidade da história, complicada mais tarde de formas curiosíssimas. Durante a sua permanência no local, as freiras vão ter que enfrentar não só a forte resistência dos habitantes locais, mas também vão ter que lidar com algumas situações incómodas dentro do seu próprio grupo. Esta primeira imagem, na qual nos apresentam o palácio que virará convento, é verdadeiramente icónica, fruto da sua omnipresença ao longo do filme (até à noite a fotografia é belíssima), pelo que não podia nunca de a deixar de colocar aqui.


O filme começa então por apresentar-nos a protagonista da história, a Irmã Clodagh (Sister Clodagh) - Deborah Kerr num dos seus primeiros e inesquecíveis papéis - a ser convocada pela sua superior, a Madre Dorothea (Mother Dorothea) e informada da sua missão e de quais as Irmãs freiras que partiriam consigo. A forma de apresentação das Irmãs é bastante original a nível visual, intercalando a descrição feita pela Madre com o aparecimento de cada uma das Irmãs, com cenas que retratem o que elas significam para a missão. Temos então: Irmã Briony (Sister Briony, "por causa da sua força"), Irmã Philippa (Sister Philippa, "por causa da jardinagem"), Irmã Blanche - apelidada carinhosamente de Irmã "Mel" (Sister Honey, precisamente "por causa da sua popularidade") e, por último, a Irmã Ruth (Sister Ruth). E aqui está a raiz, a fonte de sarilhos do filme. E podemos logo perceber isso pela forma como é apresentada, quer pela descrição, quer pela imagem que a retrata - um banco vazio:



"And Sister Ruth".
"But Sister Ruth is ill..."
"That is why I want her to go."
"[...] Do you think our vocation is her vocation?"
"Yes, she's a problem. I'm afraid she'll be a problem for you too. [...] Give her responsibilities. She badly wants importance."


Depois de introduzidos no filme, conhecemos logo à chegada das freiras a Mopu, nos Himalaias, que a reacção dos locais a elas não será nunca muito favorável. E percebemos também logo que a Irmã Ruth não é, de todo, flor que se cheire. Ela vai funcionar como a força motriz do filme, complicando-o de forma espectacular. Um bom momento que define impecavelmente a sua personalidade é a forma como reage no seu primeiro encontro com Mr. Dean, uma espécie de capataz, no qual ela se encontra cheia de sangue e obviamente envergonhada por se encontrar assim perante o primeiro homem atraente que a vê em muito tempo. E passamos nós a perceber por esta cena que o problema da Irmã, mais que uma crise de fé, é uma desesperada necessidade de voltar à vida normal.


Como o meu objectivo com isto é levar-nos a ver o filme, não me alongarei muito mais na história, só dizer mesmo que quando o Convento começava a ganhar forma e a cooperação com os habitantes da aldeia estava finalmente a frutificar, tudo muda inesperadamente com um acontecimento que leva  o caos a instalar-se, com os locais a recusarem-se a frequentar o Convento e a exigir o abandono da terra por parte da Missão. Em simultâneo, a Irmã Ruth começa a perder o controlo emocional e mental, o que acarreta mais problemas e mais preocupações para a Irmã Clodagh, que se vê numa situação insustentável.


O clímax final do filme acentua ainda mais a minha opinião favorável acerca de toda a obra, com este duelo inesperado (mas não imprevisível, pois dava para perceber que Ruth iria eventualmente fazer algo maluco) a duas, qual das duas a mais perdida na imensidão dos seus pensamentos, qual das duas a mais afastada da sua causa, da sua fé.


Um filme irrepreensivelmente filmado, com elevada qualidade de fotografia, genial na forma como emprega o simbolismo e o iconicismo (algumas imagens surgem como que omnipresentes em vários momentos no filme, como a abertura das portas, como o sino no precipício, como os jardins floridos, entre outros) e como consegue recriar, negativo a negativo, cena a cena, tanto detalhe e tanta coisa para ver e saborear; uma história que mescla a histeria, a tensão sexual, a crise de fé e de identidade e nos presenteia com uma Índia diferente, exótica, bizarra, sensual, perigosa que, apesar de muito simplista, é bastante eficaz, crua, directa; e uma direcção artística de excelência, balanceando o opulente (algumas das salas do palácio) com o sombrio e o frio (a capela é um bom exemplo disso), fazem deste filme um deleite de ver. 


A realçar ainda as boas interpretações de todo o elenco, com especial foco em Kathleen Byron (a sua Ruth ainda me assombra dois dias depois de ver o filme) e em Deborah Kerr. Uma actriz extraordinária, com uma expressividade facial raríssima nos dias de hoje, que o realizador Michael Powell aproveita - e bem - nos frequentes close-ups que pede a Cardiff. Neles, Kerr mostra choque, surpresa, receio e zanga, tudo na mesma expressão, na mesma face. Parece que a sua cara conta mil histórias e nos fornece tudo o que precisamos de saber sobre a pessoa, sobre o seu mundo, sobre o que se passa na sua mente. Formidável.

Uma obra-prima digna de todos os elogios recebidos que eu gostei imenso. E se Kerr já me tinha enchido o olho nos (poucos) filmes que vi dela, neste ela fascinou-me de vez.

E agora... A minha escolha para THE BEST SHOT / A MELHOR IMAGEM:


NOTA:
A-

Abaixo deixo o texto publicado acima mas em Inglês e reduzido, pois como eu já disse esta crítica vem no seguimento de uma rubrica num blogue que fala Inglês e, como tal, eu tenho que traduzir para quem a decida ler.


For my first participation on the hit "Film Experience" series, I haven't managed to select only one image. I tried but I failed. So I went with eight. My initial idea was to pick seven, because 7 is the number of perfection and "perfection" is an attribute that suits the film very well, since it has one of the most accomplished combinations of  excellent photography, art direction and score that I've seen in films prior to the 90s (of course it's easy to bring up immediately 20 examples from this past decade that we'd consider superior and that may be right, but we have to think that it's amazing that this quality work has been made in the late 1940s). Such visual lush and power was obviously worthy of reward and the Academy did gave them 2 Oscars, for Photography and Art Direction.  
Now let's discuss the film. Its premise is quite simple actually: we are invited to accompany a group of nuns that leaves for the Himalayas, where they are told to build a religious community by turning an old palace into a convent, the Saint Faith Convent. What makes the film so interesting to follow is in fact the simplicity of the story, further complicated in beautiful and curious ways. It is rather evident from early on that this mission wouldn't work out well, with the nuns having to face not only local resistance but also problematic situations among their group.
The movie first introduces us to Deborah Kerr's character, Sister Clodagh, who is ordered by her superior, Mother Dorothea (who clearly dislikes Clodagh and considers her unsuited for the job), to leave for Mopu in the Himalayas and erect a Convent there. Then the film uses her to introduce us to the other nuns that are going to accompany Sister Clodagh on her mission, in an original, refreshing way, by showing a scene involving them that fit the description that the Mother Superior offers of them: Sister Briony ("her strenght" - and she is shown holding a heavy jar), Sister Philippa ("the garden" - she appears to be analising a tomato), Sister Blanche (nicknamed Sister Honey because of "her popularity" which she indeed seems to be, surrounded by a big group of nuns giggling) and Sister Ruth. Sister Ruth's "illness" is very omnipresent throughout her remaining scenes in the movie, making perfect sense that she'd be so intelligently portrayed in this introduction scene, where an empty bench is shown, followed by a lovely exchange of dialogue ("Do you think our vocation is her vocation?";"Yes, she's a problem. I'm afraid she'll be a problem to you too";"She badly wants importance"), making us aware of the trouble she can bring to Sister Clodagh's assignment.
The movie then carries on and lets us perceive exactly the kind of personality of each nun, focusing especially on Sister Ruth. A great moment that impeccably defines her personality is the way she reacts on her first encounter with Mr. Dean, utterly embarrassed not only because she is covered with blood, but also by the fact that she's quite charmed by him (of course it helps that he may be the first man she sees in a long time). This helps us understand that this woman's problem, more than her obvious loss of faith and lack of commitment to her vows, is a desperate need to go back to a normal life. 
Since I want you to see the movie for yourselves, I'm not going to expand my tell on the story. I'm just going to say that as the movie continues, we begin to experience a bit of a twist in the peaceful relationship between the locals and the nuns, which gets messy because of a misfortunate event, one that will eventually cause the departure of the nuns. Moreover, Sister Ruth loses more and more of her grip, showing progressive loss of emotional and mental control, all this eventually leading to an unbearable situation for Sister Clodagh. The film ends with a sour note after an extraordinary final climax: an unplanned (yet predictable) duel between the two nuns, which made me realise what a fantastic build-up to this moment the movie was: two opposites, but both with their endless, melancholic thoughts, both yearning to go back in time to their pasts, to their regular lives, both lacking faith.


A film irreprehensibly, beautifully shot, on the hands of a brilliant photograph and art director, applying here a delicate fusion of the shadow, the dark and the opulent, resorting to the symbolism and iconicism of some amazing images (omnipresent throughout the film, like the doors opening, the bell in the cliff, the flowery gardens, the cold, crude look of the church, among other examples) and offering us so much to explore, to experience, to savour. A simple story, very well constructed, that mixes sexual tension and lust, hysteria and a faith and identity crisis, while introducing us to an exotic, bizarre, sensual, dangerous India. And very good performances from all the cast, especially Kathleen Byron and my new love Deborah Kerr, which embodies in perfection a breed of actresses that rarely exists nowadays: a complete performer, with a fantastic arsenal of facial expressions - when Powell closes up on her, she tells us everything we need to know about her character and her world through her face: it's shock, it's surprise, it's anger, it's fear, all in the same expression. Genius. Formidable.


All in all, this film was a delightful experience worth every minute of my time.

2 comentários:

Nuno Barroso disse...

Realmente, um filme incrivelmente bonito. Cada frame é melhor que o seguinte! Para além disso temos uma brilhante Kathleen Byron. Muito bom! :)

Cumprimentos

Jorge Rodrigues disse...

Obrigado pelo comentário, Nuno. Também concordo, é muito bonito o filme e ela é excelente!

Abraço,

Jorge Rodrigues